Drogas, álcool, dramas passionais, escândalos financeiros, maridos homossexuais, um talento excepcional… Bom… Judy Garland voltou…
Não voltou através da série de filmes Andy Hardy que eu vi na minha infância e que estiveram para os adolescentes de então, como a Partridge Family esteve para as gerações seguintes, ou mais tarde o Fame, ou actualmente o Glee, que tanto sucesso vai fazendo junto dos teenagers!
Voltou através da peça de Peter Quilter “O fim do Arco Íris”! E claro, que a receita de sucesso é precisamente a mesma que fez do filme sobre Edith Piaf um campeão de bilheteira: Acentuam-se os sinais de decadência física e mental, realçam-se as mudanças extremas de humor, estimula-se no espectador o sentimento de compaixão e coloca-se um conjunto de canções magníficas, que não deixam ninguém indiferente!
Explorada cruelmente durante toda a sua vida, serve agora de galinha dos ovos de ouro para empresários teatrais de todo o mundo! É a sina de Garland mesmo após a sua morte!
Estreada primeiro em Sidney há já seis anos, foi-o mais recentemente em Londres e depois em mais de 30 cidades de todo o mundo, incluindo Lisboa desde a semana passada. Tem sido um êxito em toda a parte. Na Broadway estreará em Março com a atriz protagonista da capital inglesa.
Não vi ainda a peça e não vou portanto pronunciar-me sobre ela. Apenas realço o facto de que em Londres, Sidney, Madrid ou Rio de Janeiro as atrizes escolhidas para protagonista serem bastante experiente e com uma idade aproximada à da personagem, ao passo que em Lisboa a escolhida por La Féria é a jovem cantora e atriz Vanessa com cerca de 30 anos! E confesso, que esta aposta arriscada me faz sentir bastante curioso…!
Mas do que trata a peça? O enredo é completamente ficcionado, tomando como base a estadia de Judy Garland na capital britânica, seis meses antes de morrer! Estava-se no final de 1968, e as cenas passam-se num quarto do Savoy, onde efetivamente esteve hospedada e no
Talk of the Town onde se apresentou!
Nessa altura Judy já estava bastante doente, com um cancro no fígado e mantinha-se dependente de vários medicamentos e do álcool. Mantinha igualmente inalterada a sua energia em palco e a sua vontade de viver.
Entram nela três personagens: Duas reais, a de Judy e a do seu noivo e futuro marido Mickey Deans (um gerente de um bar gay de Nova Iorque, muito mais jovem que a cantora) e uma personagem ficcionada, a do pianista homossexual Anthony Chapaman.
Aliás, a relação de Judy com o mundo gay não aparece na peça por acaso, já que é uma das características mais marcantes da sua vida e da sua carreira. A comunidade gay idolatrava-a e três dos seus maridos eram homossexuais (o último inclusivé, com quem contraiu matrimónio apenas 3 meses antes de falecer).
Com Vicente Minnelli, o seu segundo marido, o casamento acabou quando Judy se apercebeu, durante as filmagens do filme "O Pirata dos meus sonhos" que o marido estava mais interessado em Gene Kelly do que nela. Este facto, levou-a à primeira tentativa de suicidio!
Com Mark Herron, que foi o promotor de uma complicada digressão pela Austrália, ela arriscou o casamento, mesmo sabendo que ele, na altura, vivia com outro homem. O matrimónio acabou quando ela o apanhou na cama com o jardineiro e correu atrás dele de facalhão em punho! Judy tinha azar quer com os maridos, quer com os empregados!
Mas a história de casamentos com gays na familia já era antiga pois o seu pai, também ator e cantor, era igualmente homossexual e por causa dessa situação foi mesmo obrigado a sair com a mulher e filhas da terra onde viviam para evitar um escândalo de grandes proporções!
E se este tipo de situações já era antigo na família, a tradição manteve-se para as gerações mais novas, um "protegido" de Judy, o cantor e compositor de sucesso Peter Allen, também homossexual, acabou por tornar-se no primeiro marido da sua filha Liza Minnelli...
Entretanto, regressemos à sua apresentação na prestigiada “Talk of The Town” (que não era nenhuma boite de quinta categoria, como refere o programa da peça aqui em Lisboa) e que era aguardada pelo público londrino com enorme expetativa pois, devido ao seu estado de saúde, tanto poderia corresponder a apenas uma noite, como prolongar-se pelas cinco semanas previstas.
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E, de facto, Judy, após uma gloriosa noite de estreia, com Ginger Rodgers e Zsa Zsa Gabor a assistir entusiasmadas, conseguiu cumprir integralmente o seu contrato e ainda fazer uma digressão pela Suécia e pela Dinamarca, até Março de 1969 !
Judy, que morreria em 22 de Junho de 1969 de uma dose excessiva de um medicamento para dormir chamado Seconal, apesar de doente e precocemente envelhecida, conseguia ainda arrebatar o público.
É de uma das suas atuações no TALK OF THE TOWN o seguinte registo audio:
Judy Garland foi lançada pela sua mãe aos 3 anos na vida artística e aos dez anos surpreendeu Louis B. Mayer e toda a MGM com o seu timbre já de mulher adulta e enorme amplitude vocal!
Sua mãe aceitou um contrato em que Judy era paga miseravelmente, mesmo quando dava milhões de dólares a ganhar aos Estúdios.
O seu salário no Feiticeiro de Oz era pouco superior ao valor que era pago aos donos do cãozinho Tótó que era seu companheiro no filme e na série de nove filmes Andy Hardy nunca ultrapassou os 350 dólares semanais!
A MGM e a mãe dominavam a sua vida por completo, fazendo-a trabalhar como uma escrava e obrigando-a a tomar anfetaminas para emagrecer, o que fazia com que tivesse que tomar depois barbituricos para dormir, e de madrugada estimulantes para que acordasse e conseguisse trabalhar sem descanso mais de14 horas por dia!
Ao contrário das restantes estrelas da MGM, Judy mais talento do que beleza e Louis Mayer chamava-lhe a "corcundinha". Era também mais gordinha do que deveria, por isso apertavam-na com cintas e ligaduras para que parecesse mais esbelta.
Foi assim aliás que filmou o "Feiticeiro de OZ" e alguns outros filmes. Para além de lhe prejudicarem a saúde para sempre, eventualmente por ignorância, provocaram-lhe deliberadamente danos irreversíveis na sua autoestima, para mais facilmente a controlarem.
Ora, para além desta loucura de vida para uma criança, a partir de certa altura Louis B. Mayer, que tinha habitualmente na sua cama Lana Turner e Deanna Durbin, com a conivência da sua própria mãe de Judy, fazia-lhe um insistente e chantageante assédio sexual, que ao não ter tido sucesso, levou o dono da MGM a fazer tudo para que a vida dela fosse um inferno, pondo inclusive os seus amigos da Máfia a invadir-lhe a casa e fazer-lhe constantes ameaças de morte.
Aos 18 anos e com este terrível ambiente, Judy optou por abandonar a sua mãe, casando com David Rose, bastante mais velho do que ela, o que momentaneamente a fez sentir-se mais segura.
Contudo, um ano depois, ao ficar grávida, Louis Mayer, a sua mãe e até o seu próprio marido, impuseram-lhe que fizesse um aborto para não prejudicar o ritmo de trabalho a que estava obrigada contratualmente!
Judy sentiu-se então mais sozinha do que nunca e terá ficado traumatizada para sempre! O casamento acabou, tal como o relacionamento com a sua mãe e, juntamente com as drogas de que dependia, veio o álcool… para ficar!
Tendo passado a vida encerrada em estúdios a filmar ou preparar cenas ou concertos, toda a sua vida financeira era dirigida por terceiros.
Primeiro pela sua mãe, que se aproveitou ao máximo do dinheiro de Judy e depois pelos seus maridos..
Muito do que ganhou escapou assim ao seu controle, o que fez com que fosse apanhada de surpresa pelas autoridades fiscais, a meio da década de 50, com uma divida de muitas centenas de milhares de dólares relativos a impostos não pagos em 1951 e 1952, anos que se seguiram à tumultuosa separação entre Garland e Minnelli.
Nessa altura, quem geriu as suas finanças foi David Begelman, que era seu agente artístico e de outras figuras importantes do showbusiness americano como por exemplo Marilyn Monroe, Woody Allen, Richard Burton, Peter Sellers, Gregory Peck, Henry Fonda e Rock Hudson.
Veio-se a saber posteriormente que fora Begelman que desviara o seu dinheiro e que inclusive lhe extorquiu largos milhares de dólares dizendo-lhe que a Máfia possuía fotos da cantora a entrar inconsciente para o Hospital. Essas fotos seriam enviadas para os jornais, caso Judy não pagasse o valor que pretendiam!
Também esse dinheiro foi parar à conta de Begelman, sendo a chantagem da Máfia uma pura invenção sua em que Judy, credulamente, acreditou!
Estes factos, aliados ao prejuízo comercial do filme “A Star is Born” em que resolveu investir financeiramente (apesar da crítica o considerar uma obra-prima do cinema) tornou-a cada vez mais instável psicologicamente e vulnerável aos medicamentos e à bebida.
Os concertos quer nos Estados Unidos quer em Londres e os discos, acabaram por ser a sua principal fonte de sobrevivência! Quando em 1964 lhe foi oferecido pela CBS o contrato mais valioso de sempre da televisão americana, de 24 milhões de dólares, para fazer várias temporadas de um show televisivo semanal, Judy pensou que os seus problemas ficariam resolvidos.
No entanto, apesar do show ser magnifico e ter ganho um Emmy para o melhor programa musical da televisão, a partir de certa altura não conseguiu manter as audiências iniciais, pois a concorrente NBC, lançou precisamente no mesmo horário a série Bonanza! A consequência disso foi o cancelamento do Judy Garland Show logo no final da primeira temporada!.
Para Judy Garland este foi mais um golpe nas suas finanças e foi sobretudo um golpe profundo do na sua já muito débil auto-estima!
E para isso contribuíram igualmente as dificuldades que ía encontrando no mundo do cinema!
Depois de, ao fim de 15 anos, se ter libertado das amarras que a prendiam à MGM, nos anos seguintes, apesar de ser contratada para vários filmes acabaria por ser substituída devido a problemas derivados ao consumo excessivo dos medicamentos!
Apesar disso, os seus poucos trabalhos no cinema acabariam por ser reconhecidos com duas nomeações para os Oscars, que contudo nunca viria a ganhar:
Em 1954 com “A Star is Born” (com o qual ganhou no entanto um Globo de Ouro para melhor atriz)!
E em 1961 com “Julgamento de Nuremberga”!
O avançar da idade, o que para as atrizes faz escassear os papéis no cinema, e o facto de ser pública a sua dependência de medicamentos e de álcool foram-se tornando motivos de desinteresse e desconfiança dos realizadores…
Conta Patty Duke uma das protagonistas da película “O Vale das Bonecas”, que Judy foi contratada pela 20th Century Fox para esse filme pois, não só algumas personagens eram inspiradas em vários aspetos da sua vida, mas também porque o papel que lhe estava destinado era feito exatamente à sua medida de atriz e cantora, Foi portanto uma imposição do Estúdio, o que não agradou nada ao realizador Mark Robson.
No entanto, como Robson não podia dizer que não ao Estúdio, segundo Patty Duke, teve para com Judy um comportamento de absoluto desrespeito : Durante os testes de filmagem e de guarda-roupa mandava-a estar no Estúdio às 6h30 da manhã e punha à sua disposição todo o tipo de bebidas e nenhuma comida. Acabava por só a chamar ao começo da noite, quando tinha a certeza de que ela já teria bebido para além da conta!
Ao fim de algum tempo Judy deixou de aparecer todas as madrugadas e sempre que ele percebia que ela não estava, chamava-a de forma a que todos se apercebessem da sua ausência! Acabou por ser despedida por não respeitar os horários e substituída por Susan Hayward.
Logo no início deste post fiz uma referência a série juvenil Glee onde aparece uma personagem homossexual, cuja foto apresento a seguir e, a esse propósito, volto a reportar-me a alguns factos que estão intrinsecamente ligados à vida de Judy Garland
Se Judy tinha problemas com os Estúdios de cinema, a verdade é que no campo musical ela tinha imenso sucesso que fazia encher as salas de concerto e vender os seus discos. Tinha no entanto que defrontar-se com críticas ferozes da direita conservadora, que afirmava que os seus espetáculos estavam sempre cheios de homossexuais ou, como dizia William Goldman, no seu livro “The Season”: “de rapazes com ar delicado vestindo calças muito justas”!!!
A revista Time criticou-a duramente, pois devido a esse facto considerava os espetáculos de Judy impróprios para famílias!
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Em entrevista à CBS ela teve que se defender dessa acusação dizendo apenas que cantava para pessoas, fossem elas o que fossem.
Contudo, a partir daí resolveu passar a atuar também em night-clubs gay, numa época em que a homossexualidade era violentamente reprimida pela polícia!
E foi num desses locais que veio a conhecer o seu quinto marido! Talvez por essa atitude amistosa face aos homossexuais, a expressão “amigo de Dorothy” tornou-se nos anos 60 o nome de código que substituía a expressão “homossexual”.
Dorothy era, como se sabe, a personagem interpretada por Judy no Feiticeiro de Oz, onde cantava a célebre canção “Somewhere over the rainbow”. E do mesmo modo as cores do arco íris (rainbow) vieram a tornar-se a imagem símbolo daquela comunidade!
Em simultâneo, aquando das rusgas a esses bares, sob o pretexto de venderem bebidas sem autorização (o município não lhes concedia licença de venda para bebidas alcoólicas) os gerentes, ao ser-lhes pedida a identificação, afirmavam sempre chamar-se “Judy Garland”.
Judy de quem John Kennedy foi um amigo constante, recebia inúmeros telefonemas do Presidente que invariavelmente lhe pedia que cantasse algo e foi desde criança até à sua morte um dos talentos musicais mais marcantes do século XX.
A sua vida terminou de uma forma triste e muito precocemente e, como se percebeu desde logo, deixou um vazio imenso
Milhares de pessoas mobilizaram-se para as cerimónias fúnebres, prestando-lhe uma homenagem e que parou Nova Iorque e que depois culminou na chamada rebelião gay de Stonewall!
Feito o funeral e colocado o seu corpo numa campa provisória (uma gaveta aberta com o caixão exposto ao tempo), ficaria abandonada mais de um ano até que o jornal National Enquirer noticiou o assunto que se tornou um escândalo público.
Filhos e marido fizeram comunicados: Os filhos pensaram que o marido trataria do túmulo de Judy e o marido, que se queixava de não ter dinheiro, afirmava-se convencido de que os filhos já teriam tratado do assunto!
Finalmente, depois deste embaraço público da família, o corpo de Judy acabou por ser transladado para um túmulo definitivo, simples mas decente!
Espero que apesar do aproveitamento desta figura trágica, mas fascinante, que foi Judy Garland a peça de teatro “O Fim do Arco-Iris” lhe faça a devida justiça!