Hoje trago até aqui a minha visão de um outro espectáculo teatral:
A Dúvida, de John Patrick Shanley. Em cena até 6 de Maio no Teatro Maria Matos.
O texto transporta-nos aos anos anos 60, dentro de uma escola católica da ordem das irmãs de caridade, situada no bairro do Bronx . Quatro personagens – um padre, a madre superiora, uma freira e a mãe de um aluno – envolvem-se numa trama pautada pela incerteza e intolerância, desencadeando uma série de conflitos e situações-limite.
A polêmica em torno do abuso do único menino negro da escola, por um dos padres, constitui o pano de fundo desta peça.
Uma peça a preto e branco!
Os cenários, as vestes dos protagonistas e a própria cor da pele das personagens foram os elementos semioticos que o autor (e encenadora) nos ofereceram com inteligência e bom gosto, para transmitir o confronto ideológico entre o progressismo e o conservadorismo, a ingenuidade e a experiência, a pureza e a astúcia, o Bem e o Mal.
Deste ponto de vista o espectáculo é artística e esteticamente coerente e conseguido.
Não conheço o texto original, nem a outra versão em língua portuguesa escrita pela Beatriz Segall. Talvez esse conhecimento pudesse dissipar-me algumas dúvidas essenciais sobre o texto.
Confesso que, normalmente, encaro textos como o desta peça, em que existe um tipo de dialética simplista a partir de personagens que se encontram nos extremos do pensamento, como pouco criativos.
Mas, a verdade é que com a própria construção dos diálogos, o autor consegue fazer o publico relativizar as posições dos dois contendores (irmã Aloysius e padre Flynn) colocando-o numa espécie de expectativa neutral de ver suceder, à pureza cromática das cores opostas, uma variedade de tons intermédios de compromisso e sabedoria.
Não me espanta pois, que o texto tenha ganho o Pullitzer e a peça o Tony.
Trata-se portanto de um espectáculo que vive do texto e portanto da respectiva representação. Merece pois bons actores. Teve Eunice Muñoz e Diogo Infante.
Pareceu-me terem tido um trabalho razoável. Serviram a peça, mas sinceramente não deslumbraram.
Eunice com as habituais dificuldades de dicção, manteve o seu registo habitual e já visto noutros papéis.
Diogo, por seu lado, se é certo que foi capaz de vestir a pele de um homem surpreendido e acossado por uma terrível acusação, não conseguiu convincentemente acrescentar a essa pele a do eclesiástico colocado nessa mesma situação…
Eunice e Diogo deram-nos, de facto, um confronto entre uma senhora idosa e um homem relativamente jovem, ambos vestidos de religiosos...mas... faltou-lhes a subtileza (eventualmente por culpa da encenadora)... o golpe de asa que nos transmitisse, um confronto entre uma freira directora de um colégio e um padre professor…
Os sinais, ou foram exclusivamente exteriores, ou se existiram, foram demasiado ténues para a transmisssão de toda a idiossincrasia do conteúdo psicológico das personagens. No entanto, repito, os actores serviram a peça… e o público, no qual me incluo, saiu da sala razoavelmente satisfeito.
Diz o Autor a “dúvida” – diagnosticada inicialmente como um sinal de fraqueza – surge como um verdadeiro elemento transformador do ser humano, ao exigir mais coragem do que convicção.
Diz ainda que “Quando uma pessoa tem sua certeza abalada é sinal de que ela está diante de um crescimento. A aparente sensação de estar num caminho errado é, na verdade, saudade do conforto do que se conhece. A vida começa a acontecer quando se quebram os velhos hábitos mentais e a dúvida vem à tona, como uma oportunidade de reentrar no presente”,
Ah...Uma última palavra para a música deste espectáculo: Um original magnifico de Bernardo Sassetti, que brevemente irá ser editado em disco. Discreta e simultaneamente poderosa e sobretudo muito bela. Como teria que ser….
Há 14 anos
A preto e branco mesmo.
ResponderEliminarConcordo com a crítica. Vi a peça, mas esta análise ajudou-me a olhar melhor para ela.
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