sábado, maio 17, 2008

Um Conto Americano - no D. Maria II

Encontra-se em cena no Teatro D. Maria II a peça de David Mamet, The Water Engine, que aqui é designada por Um Conto Americano.

Fui vê-la no passado sábado!



Trata-se de uma peça originalmente escrita para a rádio e que portanto necessita de adaptações, obrigando o encenador a uma série de opções difíceis.

Difíceis não só por isso, mas também porque a linguagem de David Mamet é, no texto original, toda ela simbólica, feita de pequenas frases, quando não monossílabos, fazendo-as assemelhar-se a um percurso difícil, que reflecte acima de tudo os elementos caracterizadores da personagem.




As falas do protagonista no texto original, como assinalou o New York Times, a propósito de uma encenação efectuada em 1999, seriam no mundo real frases próprias de alguém que sofreu uma lobotomia ou que se encontra hipnotizado. No mundo de Mamet, porém, serão frases de pureza e ingenuidade, num mundo adulto e obcecado por interesses mesquinhos e jogos sujos de poder.

Apesar de toda esta complexidade, a peça tem passado por vários teatros de todo o mundo e dado origem às mais diferenciadas concepções cénicas.




Numa das suas duas últimas produções, a de Minneapolis (Dezembro de 2007), o minimalismo da encenação foi levado ao extremo, limitando-se a reproduzir em palco uma emissão radiodifundida da peça.

A solução do encenador foi, simplesmente, a de colocar microfones espalhados pelo palco e pôr os actores a ler a peça e deitando em seguida, para o chão as páginas de texto já lidas.

Em Boston (Outubro de 2007), uma outra encenação desta peça, teve igualmente um início “radiofónico”, "saltando" depois as personagens do estúdio de rádio para um ambiente mais realista. Em ambos os casos a peça não durava mais de hora e meia.

E em Lisboa? Bom aqui a peça teve uma encenção bastante complexa que a faz durar cerca de duas horas e meia!!!

E esse excesso, imaginado como um dos seus trunfos, é afinal um dos seus principais problemas! Mas já lá irei!



Em Lisboa, o espectáculo tem tudo menos de minimalista. Trata-se de um espectáculo que revela um empenho muito forte de toda uma equipa e em que o cenário acaba por assumir o lugar mais importante da peça!

Penso que a opção da encenadora portuguesa foi não poupar meios, nem actores. Foi dar-nos uma visão o mais alargada possível de todas as mensagens que Mamet quis transmitir, dar-nos todas as palavras, todos os gestos, todos os sons, dar-nos o principal fio condutor e todos os fios paralelos e afluentes. Foi dar-nos um espectáculo grandioso.

Agora, se me perguntarem se eu acho que do enorme esforço da encenadora e dos actores, que de todo o empenho nos pormenores, que de toda a imponência e perfeição do cenário, que de toda a complexidade cénica resultou um espectáculo agradável, entusiasmante e apelativo terei que dizer, na minha modesta opinião que, infelizmente, não!

As razões desta minha desconsolada visão da peça, sintetizarei mais adiante, refiro agora, apenas, que no final da récita a que assisti, a frieza e escassez de aplausos da plateia, revelavam que não era apenas eu que iria sair do teatro frustrado.



Para já abordemos o tema da peça! Trata-se de um tema muito aliciante.

Em 1934, ano da Exposição Universal de Chicago, um jovem inventor desta cidade, descobre um meio de usar o hidrogénio da água, para fazer trabalhar um motor.

Querendo patenteá-lo, acaba por ser impedido pelo verdadeiro poder que domina a cidade e o mundo: o poder económico.

Partindo daqui desenvolve-se a acção que abrange um conjunto variado de personagens.

O inventor, a sua irmã, os seus amigos, os advogados, o jornalista, as “bailarinas”, os “políticos”, os operários e o povo em geral.

Chegados aqui, após esta longuíssima introdução, gostaria de dizer o que achei bem na peça e o que não gostei:

Pontos positivos:



- A qualidade visual do espectáculo e todo o funcionamento do cenário.
Logo de inicio é-nos dada uma visão do mundo, muito à semelhança das imagens de Metropolis de Lang, com uma movimentação de actores e figurantes encadeada num cenário industrial, que ele próprio, tal como em no filme de Lang é a razão de ser da vida daquela sociedade.
Esteticamente o cenário e a movimentação de actores, do principio ao fim, é de grande beleza, como raramente se vê em palcos nacionais.

- A atenção a quase todos os detalhes físicos dos elementos de cena, seja o guarda-roupa, sejam os adereços (excepto os planos da máquina, que são absolutamente risíveis).

- O cuidado na justeza dos suportes musicais, com canções de época perfeitamente enquadradas no espectáculo.

Aspectos negativos:



- Referenciações de época algo confusas.
Na verdade, pelo meio da acção principal, ocorriam quadros paralelos, que nos remetiam para algo, que deduzo serem evoluções político-sociais que aconteciam mundo fora, nomeadamente a ascensão do nazismo e do fascismo! Mas, será que era isso? Nem eu, nem as restantes pessoas que comigo assistiram ao espectáculo, ficaram com uma ideia clara do que se passou!

-Lentidão na acção.
Uma peça com um texto que nos conduz a uma meta-realidade e em que as personagens são mais arquétipos do que gente comum, fica excessivamente cansativa se recheada de elementos de dispersão, por muito interessantes e cuidados que sejam.
Antes do intervalo já se via uma ou outra pessoa a dormir e no final do espectáculo o cansaço parecia já ser generalizado.

-Desequilíbrio nas interpretações.
Esta é um velho problema do nosso Teatro, que aqui mais uma vez aconteceu. Não só não se viu nenhuma interpretação excepcional, como algumas foram mesmo bastante más!
Estiveram bem Luis Gaspar ( Lang, o protagonista), Rui Quintas, Mário Jacques, Paula Mora e Maria Emília Correia (que também encenou o espectáculo).

Estiveram mal Paula Neves (a irmã cega de Lang) e Mané Ribeiro (secretária da personagem desempenhada por Rui Quintas).

Infelizmente ambas as actrizes estiveram em permanente over-acting, gritando o tempo todo. No caso de Paula Neves, penso que sobretudo por dificuldades na colocação da voz. O certo é que, no que se refere a estas duas deficientes representações, aquilo que se pretendia como paradigmas de um dado tipo de pessoa, acabou por transformar em verdadeiras caricaturas, desajustadas do contexto e da ambiência da peça.

Refiro ainda o caso do excelente actor Manuel Coelho, que fez o melhor que pôde no papel de um “inventor” à procura de uma entrevista, mas que viu os seus esforços completamente inutilizados por uma encenação que nesse ponto foi bastante infeliz e por contra-cenas de Mané Ribeiro tão forçadas, que pareciam quase de amadora.



Finalmente, do saldo dos pontos positivos e negativos, vem uma sensação de algum tédio, de uma desagradável frustração e de estarmos perante uma aposta importante do D. Maria II, que terá ficado aquém do desejável.

Saí-se do D. Maria II com a noção de que sob a aparência de um espectáculo, estivemos a observar um longo exercício intelectual, umas vezes interessante, outras vezes confuso, em que o que mais se destaca são alguns aspectos cénicos perfeitamente notáveis.

Não me arrependo de o ter ido ver, mas não posso deixar de colocar algumas reservas se me perguntarem se valerá a pena a deslocação!