sexta-feira, fevereiro 05, 2010

Uma voz com "classe"

Um jovem cantor de origem francesa chamado Tristan, lançou na passada segunda-feira, 1 de Fevereiro, um álbum de canções em inglês, com o título "On a human scale"!

A ele voltarei no final deste post.

Entretanto, devo dizer que uma das coisas que na música mais me desperta a curiosidade é a incursão de cantores por linguagens musicais que estão fora das suas origens e a diluição de fronteiras entre géneros musicais!

Vejamos um exemplo muito curioso: Vinicius de Moraes pegou na cantata de Bach - Jesus bleibet meine Freude (BWV 147) e fazendo uns versos belíssimos, transformou-a numa marchinha chamada “Rancho das Flores”.

Marchinha essa que foi um sucesso incrível no Brasil, no início dos anos 60, primeiro através do Grupo Coral dos Bombeiros Fulminenses e depois na voz do cantor Luiz Cláudio.

Podemos ouvi-la aqui numa gravação recente de um outro coro de bombeiros cariocas:



Ora, pouco tempo depois deste “atrevimento” que, segundo um crítico da época, assassinou o pobre Johan Sebastian Bach, mas pôs o multidões a cantar a poesia de Vinicius, estava o poeta em Paris com Baden Powel, quando o produtor e poeta Eddy Marnay, amigo de ambos e fascinado com a nova música brasileira, transformou os versos originais de Vinicius numa homenagem ao Rio e deu-os uma jovem cantora francesa em inicio de carreira, que gravou essa marchinha com o nome de “L’enfant aux cymbales”.



Estava-se em 1962 e a jovem cantora chamava-se Frida Boccara!

Frida estava no começo da sua carreira, a qual se tinha iniciado logo com um sucesso enorme através da canção “Cherbourg avait raison”, onde revelava uma maturidade vocal e interpretaviva incomum para alguém com apenas 20 anos de idade.

Para o já muito experimentado e célebre produtor Eddy Marney, Frida Boccara viria logo desde esse momento a tornar-se a sua cantora de eleição!



Frida Boccara, que as pessoas da minha geração conhecem sobretudo por ter ganho um Festival da Eurovisão em 1969, era francesa, nascida em Casablanca, oriunda de uma família de judeus italianos.

Começou muito jovem a estudar música e a preparar-se para uma carreira de soprano lírico, tendo completado os seus estudos musicais no conservatório de Paris!

Frida, no entanto, viria a optar pela chamada música ligeira.

Contudo, ao longo da sua carreira, sempre manifestou essa tendência, que eu tanto aprecio, de esbater as fronteiras entre os vários géneros musicais. E abordou-os quase todos, do clássico à chanson realliste, do jazz ao folclore, procurando sempre ter o maior cuidado nos arranjos orquestrais, o que se tornou uma marca distintiva da sua obra.

Tal como o maestro Fernando Lopes Graça dizia em jeito de brincadeira, para além de só haver dois tipos de música, a boa e a má, a música clássica é simplesmente a que tem “classe”.

Os gostos são subjectivos, mas para mim Frida Boccara sempre foi uma cantora que escolheu um repertório de “classe” e que o interpretou com “classe”!

E foi exactamente a qualidade que demonstrou desde o início do seu percurso artistico que levou a que, ainda muito jovem, fosse convidada pelo já consagrado George Brassens para os seus concertos, que em 1964 esgotaram durante meses a prestigiada sala Bobino de Paris e que acabariam por ficar célebres na história da música francesa.

Na altura duas jovens estrelas despontavam no panorama musical de Paris, Dalida e Frida Boccara!

Contudo, enquanto que Dalida era uma presença frequente nas rádios portuguesas, nessa época eu não ouvira ainda falar Frida, mas algum tempo depois, em 1968, tive a grata surpresa de conhecer esta belíssima voz exactamente com a canção que viria a ser a marca de referência de toda a sua carreira: “ Cent Mille Chansons”



Registe-se no entanto, como curiosidade, que "Cent Mille Chansons" não é uma criação sua, mas sim da fantástica cantora brasileira Maysa Matarazzo, que deu voz a esse tema na banda sonora original do filme “Le repôs du Guerrier” de 1962, realizado por Roger Vadim e com Robert Hossein e Brigitte Bardot como protagonistas.

Fosse pela formação clássica que adquiriu, fosse por simples gosto, Frida Boccara foi das primeiras cantoras ligeiras a cantar compositores clássicos: Vivaldi, Haendel, Rossini, Corelli, Telemann, Granados, Mozart, Bach, Brahms, Elgar, Smetana e Villalobos, fazem parte do seu repertório.



Tendo cantado em 7 linguas diferentes, a verdade é que a grande notoriedade internacional lhe veio sobretudo com a vitória no Festival da Eurovisão de 1969, onde terá cantado uma das mais belas canções de sempre da história daquele concurso musical.

Longamente aplaudida nesse Festival por um público completamente aturdido pela beleza surpreendente de “Un jour, un enfant” e pela interpretação extraordinária de Frida, a canção francesa viria necessariamente ofuscar a canção que tivesse a infelicidade de se lhe seguir, o que no caso foi precisamente a azarada canção portuguesa chamada “Desfolhada", apesar da força e da fantástica interpretação da cantora portuguesa Simone de Oliveira.



“Un jour, un enfant” seria entretanto editada em disco single com uma outra canção belíssima que, curiosamente, passou completamente despercebida nas rádios, mas que em minha casa rodou quase até à exaustão vynilica!!!!!

Chama-se essa canção “Belle du Luxembourg” e considero-a imperdível.



Frida Boccara editou dezenas de discos até ao início da década de 80, alguns deles em edições exclusivas para Espanha, Brasil e Estados Unidos, tendo-se retirado no inicio dessa década, numa altura em que os gostos musicais e a predominância do disco-sound não deixavam muito espaço para o tipo de música ela que gostava de fazer!

Por isso mesmo, apesar do prestígio e da qualidade que todos lhe reconheciam, passou a ser uma artista pouco interessante para as editoras discográficas.

Aliás, como ela referiu numa das últimas entrevistas que deu em 1989, o problema era não só de dinheiro como de mentalidades.

De dinheiro pois, quer nas televisões, quer nas produções de espectáculos, não se pretendia gastar com uma orquestra para um bom acompanhamento ao vivo. Ou se arranjava um pequeno conjunto ou um play-back!

De mentalidades, pois o que se pretendia era criar vedetas através de clips televisivos e não fazer crescer artistas que se apresentassem ao vivo com o devido acompanhamento.

Ela que era admiradora confessa de Michael Jackson, George Michael e de Barbra Streisand afirmava então não ter possibilidades de arranjar meios como os que eles possuiam para fazer espectáculos ao vivo e simultâneamente fazer clips.

Por isso, para ela continuar teria que deixar de ser a Frida Boccara que ela era. Seria preferivel então ficar por ali e aparecer apenas de vez em quando em ocasiões especiais em que todas as condições estivessem reunidas!

Frida, que viria a falecer em 1996 na sequência de uma infecção pulmonar, tornava todas as músicas em que tocava em verdadeiros clássicos, dando a conhecer algumas pérolas escondidas, como a canção "Doorgaan" do cantautor holandês Ramses Shaffy, um homem com uma vida tão rica, quanto atribulada, falecido no final do ano passado e infelizmente muito pouco conhecido fora dos Países Baixos



Frida Boccara já não está entre nós, mas deixou-nos a sua música belíssima que a mim me dá sempre um prazer imenso recordar. E deixou um filho, que também se dedica à música e que se chama Tristan! Tristan Boccara!