domingo, setembro 21, 2008

Porque Feltin rima com Dahan

Quem se lembrará de Maurice Feltin, hoje em dia?

Alguns decerto! Maurice Feltin foi, nas décadas de 50 e 60, Bispo de várias dioceses francesas, Arcebispo de Bordéus e de Paris e Presidente da Conferência Episcopal Francesa


Arcebispo de Paris Maurice Feltin

Este prelado começou por ter notoriedade pública ao ter organizado na década de 50 uma revisitação dos Autos de Fé à porta da Catedral de Dijon.

Fê-lo para proceder à queima de um Pai Natal gigante de quase 4 metros de altura, como meio de chamar a atenção para a crescente paganização do Natal.

O que conseguiu principalmente foram sorrisos, foi ver o seu nome nos jornais ao fazer recordar o passado inquisitorial da Igreja Católica e foi, de imediato, obrigar os bombeiros a apagar uma enorme fogueira.

Embora quisesse ser original na forma de colocar as suas razões, não teve nem uma ideia feliz, nem dela resultou algo de positivo!

Mas o acto que o tornou mais falado, foi a decisão de proibir, na qualidade de Arcebispo de Paris, e portanto em nome da Igreja Católica, a realização de uma missa fúnebre aquando do falecimento de Edith Piaf, alegando que o estilo de vida da cantora não era compatível com a celebração desse acto religioso.

Maurice Feltin chegou a Cardeal!


Claro que a decisão da Hierarquia da Igreja francesa, tomada logo após a morte de Piaf, a 10 de Outubro de 1963, não conseguiu influenciar os admiradores da cantora, nem mesmo os mais católicos, que passaram aos milhares, durante 3 dias, frente ao nº 67 do Boulevard Lannes, onde Edith residia, em Paris, cobrindo com flores os passeios da Avenida.

A comoção popular foi tal, que fez com que o seu funeral, a 14 de Outubro de 1963, se tornasse na maior manifestação pública a que Paris assistiu, só comparável à ocorrida aquando do final da 2ª Guerra Mundial.

Segundo recorda Charles Aznavour, o trânsito, em toda a cidade de Paris parou, literalmente, nesse dia 14 de Outubro de 1963!

Os comerciantes colocaram cartazes com faixas negras nas suas montras e centenas de milhares de pessoas encheram as ruas ao longo de todo o percurso do féretro.

Impedidas de lhe prestar a sua última homenagem num Templo, como estavam à espera, uma multidão de cerca de 40 mil pessoas forçou a entrada e invadiu o cemitério Pére Lachaise para passar junto à campa e tocar no caixão de Edith.

Foi um momento de enorme emoção colectiva, mas também de completa anarquia, que as autoridades foram incapazes de controlar.




Na verdade, ficaram a subsistir dúvidas quanto às razões do Arcebispo de Paris. Possivelmente elas tiveram que ver apenas com a sua visão muito pessoal do papel da Igreja na sociedade!

Um pouco mais de um ano antes, em 25 de Setembro de 1962, um acontecimento cinematográfico ocorrido na capital francesa, tivera honras diplomáticas sem precedentes.

O filme “O Dia Mais Longo”, um dos mais interessantes trabalhos cinematográficos sobre o final da Segunda Guerra Mundial, teve a sua estreia mundial em Paris.

Nessa altura a França de De Gaulle, aproveitou a ocasião para fazer esquecer o desastre ocorrido na Argélia, cuja independência era proclamada exactamente nesse mesmo dia pela Assembleia Nacional argelina.

Para isso, preparou um cerimonial especial, que teve honras de Chefes de Estado e de Governo de quase todos os países aliados.

Deu-se assim, a propósito da estreia daquele filme, uma verdadeira cimeira internacional, repleta de todo o tipo de celebridades, que teve o seu ponto mais alto, precisamente no cimo da Torre Eiffel, onde foi colocado um palco e onde, perante um grupo das mais conhecidas figuras mundiais, Edith Piaf, terá tido, talvez, a apresentação mais extraordinária da sua vida!

Piaf cantou o tema do filme (que nunca viria a gravar, sendo depois Dalida a registá-lo em disco), cantou ainda algumas das canções mais emblemáticas da sua carreira e por fim o Hino Nacional Francês, a Marselhesa!




A França consagrava assim definitivamente Edith Piaf, aos olhos de todo o mundo, como símbolo de uma Nação e de uma Era!

Contudo, essa pequena mulher, de pouco mais de um metro e quarenta, sentida como património nacional pelo povo e pelo Estado Francês, não se eximiu, dias depois da sua consagração na Torre Eiffel, a 9 de Outubro, de casar com o jovem grego Theophanis Lamboukas, 20 anos mais novo que ela, segundo o rito ortodoxo grego, religião do noivo…

As opções da cantora, anteriormente divorciada, não terão sido, obviamente, do agrado da Igreja Católica!

E o facto é que a explicação oficial do Arcebispo Maurice Feltin, para a proibição da missa, não refere a existência de qualquer questão religiosa, que o casamento poderia ter originado, mencionando apenas o estilo vida de Piaf como inapropriado.

Esta posição eclesiástica, mesmo face aos padrões da época, foi considerada incompreensível, para além de que, perante a circunstância da morte, constituiu um ataque desnecessário e grosseiro à memória de uma figura muito querida do público.

E mais uma vez, apesar da notoriedade que conseguiu com isto nos jornais, Feltin obteve apenas os resultados opostos aos que eventualmente desejaria!

Entretanto, a explicação não oficial que circulava nas ruas, tinha que ver com o romance público que Piaf mantivera muitos anos antes, com o pugilista Marcel Cerdan, que era casado e pai de três filhos e que morrera num acidente aéreo nos Açores, quando ía a caminho de Nova York, exactamente para se encontrar com Piaf.


Edith Piaf e Marcel Cerdan


Curiosamente, até a própria família de Cerdan, cujo casamento já estava abalado mesmo antes de Piaf aparecer, acabou por compreender a situação, ao aceitar o apoio financeiro que Piaf lhes disponibilizou na altura do acidente!

Finalmente, Edith acabou por ter no Pére Lachaise acompanhamento religioso, feito por um sacerdote da Igreja Ortodoxa Grega!




Edith Piaf é pois a figura que eu gostaria de abordar neste post.

E sinceramente, não tinha pensado falar no episódio Feltin, não fora algo que inesperadamente me fez recordar esse momento de humilhação póstuma da cantora.

Tendo já alinhavado mentalmente o que pretendia escrever aqui sobre Piaf, resolvi que seria oportuno ver finalmente o filme realizado por Olivier Dahan “ La Vie en Rose”, que valeu este ano à actriz Marion Cottilard o Óscar para melhor actriz.


Pretendia, vendo o filme “La Môme- La vie en rose”, limar do meu post tudo o que se parecesse com um mero eco do conteúdo da fita.

Sendo um filme recente e tão visto, seria absurdo pôr-me repetir o que lá se encontrava!

No entanto, ao ver as imagens desta película, ao mesmo tempo que ia ficando preso àquela voz magnífica, ia ficando também constrangido com a imagem que estava a ser passada da cantora.

Percebe-se claramente que Olivier Dahan leu e pesquisou muito sobre toda a vida da Môme e fez as suas opções, sobre o que colocar no filme.

Opções que para mim só são explicáveis à luz do interesse comercial, de forma a tornar o filme um produto facilmente apetecido pelas grandes massas, um filme que desse portanto o devido retorno aos investidores.

Contudo essas opções de Dahan, no meu entender, desfocam a imagem de Edith e não constituem, como aliás o realizador reconhece, uma verdadeira biografia da artista!




Mulher com origens no bas-fond parisiense, habituada desde sempre a beber e a ter uma vida livre, amando quem queria e quando queria, Edith foi um ser humano muito para além da imagem que o filme acaba por transmitir!

Quem se lembra de Edith ainda viva, quem conhece os testemunhos dos que com ela privaram, quem viu os filmes caseiros da sua intimidade, nomeadamente os feitos pelo casal Bonel, não pode deixar de se entristecer com ideia de que, para as gerações mais jovens, a imagem que fica de Edith através deste filme, corresponde à de uma mulher com um talento extraordinário, mas cuja vida foi apenas um mar de desgraças, minada pelo álcool e pelas drogas, que a envelheceram precocemente e que a tornaram amarga, caprichosa e rude.

Uma imagem de Piaf, que este filme nos dá, talvez tivesse agradado a Maurice Feltin, mas é tristemente incompleta!

Há um outro lado do ser humano Edith, que teria sido bom que fosse também colocado no filme, e decerto com esse equilíbrio o resultado seria mais justo para com a sua memória!




O responsável pela distribuição do filme nos Estados Unidos, afirmou que não precisou sequer de 5 minutos, para perceber que o filme tinha todos os condimentos necessários a ser um sucesso.
Alguém que vence, começando na lama, sendo a sua vida um coctail de droga, álcool e sexo, amores proibidos e doenças fatais!

Marion Cottilard que interpretou o papel de Piaf, disse que o que lhe fora pedido, não fora uma imitação de Edith, mas sim a acentuação de alguns traços do seu carácter.

Cottilard crê que ficou nos limites da caricatura.

Eu, sinceramente, não negando o seu imenso talento, creio que em muitos momentos ultrapassou esses limites.

Fosse como fosse, o produto final foi um sucesso estrondoso e eu acabo ficar num pequeno grupo daqueles que consideram, que mais uma vez, a memória de Edith Piaf não foi respeitada, e que o lado mais triste da sua existência serve agora para encher os cofres de algumas produtoras e distribuidoras.


Olivier Dahan e Marion Cottilard


Um amigo, que havia visto o filme, referiu-me que a ideia com que ficou foi a de que Edith tinha um fantástico dom natural, mas que se limitou a usá-lo, no meio de uma vida dramática, desregrada e de algum modo auto-destrutiva.

Resumindo, para além da sua voz, pouco mais teria oferecido ao Mundo!

Não sei se muitos que viram o filme, principalmente os mais jovens também partilharão da opinião desse meu amigo! Temo bem que sim!

Por isso, sem querer ser pretensioso, quero dizer hoje algo mais sobre Piaf, que Olivier Dahan também poderia ter dito, para que uma imagem mais equilibrada desta extraordinária cantora fosse transmitida.

Piaf e Jean Cocteau


Dahan omitiu completamente importantes partes da vida de Edith, nomeadamente a sua faceta de autora de mais de 100 canções, entres as quais a célebre La Vie En Rose, a sua faceta de actriz de teatro sempre bem sucedida e as suas interpretações no cinema.

Omitindo isso, omitiu também a sua grande amizade com Jean Cocteau, que escreveu para ela a peça Le Bel Indefferent, e sua relação próxima com os círculos mais criativos da intelectualidade parisiense dos anos 50.



Cocteau também bastante doente, com um edema pulmonar, acabou por morrer com uma sincope poucas horas depois de Edith, logo depois saber da morte da amiga, dizendo: “Ah, se ela partiu, então também já posso ir também!”



Dahan omitiu igualmente o papel de Piaf no apoio a um elevado número de judeus, durante a ocupação alemã! Michel Emer, seu músico e compositor de muitas canções entre as quais L’Accordeoniste, foi um dos que Piaf conseguiu levar para a zona de França não ocupada e manter lá até ao final da Guerra



Omitindo isso, omitiu o controverso bom relacionamento que Edith tinha com as chefias militares alemãs, o que depois se veio a verificar que lhe dava a cobertura necessária para poder ter na sua orquestra os músicos que quisesse, ainda que fossem judeus. A dada altura a orquestra ficou apenas composta por judeus que, sem a sua protecção, teriam sido deportados para os campos de concentração.

Omitiu ainda, a sua colaboração com a Resistência, que facilitou a fuga de vários prisioneiros de guerra dos campos alemães.

O papel de Edith era bastante simples: Ela, tal como outros cantores ía actuar a esses campos, por imposição dos ocupantes nazis. Guardas e prisioneiros assistiam!
Claro que os prisioneiros franceses eram os que sentiam mais a presença da cantora, então ela pedia para ser fotografada ao lado de alguns dos cativos, mas um a um, conforme o previamente combinado com a Resistência.

Uma cópia da foto era depois enviada para o detido, como recordação do momento e outra era cortada e usada a parte do rosto do prisioneiro para forjar documentos de identificação falsos, a ser usados após a fuga.

Piaf com Charles Dumont

No filme La Vie en Rose, Dahan descreve, carregando no dramatismo da situação física de Piaf, o seu encontro com Charles Dumont. Na verdade, Piaf estava adoentada, recebeu-o em roupão e com muito pouca vontade.

Dahan omitiu no entanto, as razões da pouca vontade de Edith!
Charles Dumont vinha afirmando há anos e publicamente que não gostava de Edith e que nunca lhe entregaria uma canção.

Contudo, todos os amigos de Dumont diziam que a melhor voz para as canções que ele compunha era a de Edith, e quando ele escreveu Non, Je ne regrette rien, todos perceberam que só Edith lhe poderia dar a interpretação necessária.
Talvez por isso, Dumont manteve esta canção na gaveta cerca de 3 anos!

A custo, amigos comuns convenceram os dois a marcar um encontro de trabalho, e apesar das circunstâncias da reunião na qual nenhum deles tinha à partida especial interesse, Edith ouviu a canção e ficou absolutamente extasiada, pelo seu lado Dumont percebeu finalmente que Edith era a "sua" voz!

"Non Je ne regrette rien" tornou-se assim a canção de abertura do seu próximo espectáculo no Olympia!



Também aqui Dahan omite as razões pelas quais esse espectáculo se realizou, mostrando apenas que, em alguns momentos, ela pensou em desistir do compromisso que tinha com Coquatrix!

Com efeito, estando Edith já a sentir os efeitos do seu problema oncológico, em 1960 Bruno Coquatrix, empresário da prestigiada sala Olympia, lançou um apelo a Piaf: o Olympia estava falido, as dívidas eram enormes e não havia dinheiro para pagar ao pessoal.

A única hipótese que havia de salvar aquela sala e proteger os seus trabalhadores, seria uma série de espectáculos que fossem garantidamente dinheiro em caixa. E para isso Coquatrix só tinha uma solução segura: recorrer a Piaf!

Piaf, amiga de Coquatrix, e sentimentalmente ligada à sala e a todos os que lá trabalhavam, aceitou o desafio, contra todos os conselhos médicos!
Piaf e Coquatrix

Em alguns momentos a sua saúde fê-la hesitar, mas levou o compromisso até ao fim e deu cem espectáculos em 12 semanas, nalguns dos dias mais do que um espectáculo!

Os cofres do Olympia encheram-se de novo e a sala foi salva do encerramento! Para Edith no entanto, o excesso de trabalho ía-a aproximando do fim!

A verdade, no entanto é que o êxito foi extraordinário. Aquando da primeira apresentação de "Non Je Regrette Rien" no seu primeiro espectáculo, o público aplaudiu-a de pé durante 6 minutos. A notícia de uma nova canção de Piaf espalhou-se e, em cada sessão, a reacção do público repetia-se!

Para Charles Dumont, que já escrevera dezenas de canções para outros artistas, veio finalmente a consagração e a amizade e a colaboração entre os dois não cessaria até à morte da artista.

Num pequeno aparte, refiro que Edith Piaf dedicou a gravação de "Non Je ne Regrette Rien" à Legião Estrangeira, então envolvida nos combates da Guerra da Argélia.

Quando um batalhão desta força expedicionária, se viu encurralado e teve que se render, os militares à medida que saiam do aquartelamento íam cantando em uníssono esta canção, num coro impressionante e emotivo que ficou para história desse conflito!

"Non Je Ne Regrette Rien" tornou-se uma canção de honra da própria Legião, passando a ser cantada a partir de então em todas as paradas militares deste Corpo Militar.


Semana das Barricadas em Argel
Para surpresa de todos, Edith mesmo bastante doente e fraca parecia, no palco, ganhar nova vida, e para além dos espectáculos do Olympia iniciou uma maratona de concertos que ficaria conhecida pela Tournée suicida!

Mas quais eram as doenças de Edith?

Piaf, excepto nos últimos cinco anos de vida em que não tocou em álcool, sempre bebera e às vezes bastante! Aproveitando esse facto real, a película de Dahan não dá ao espectador muitas mais pistas, para além dos excessos de bebida e de drogas, para explicar a decadência física da artista.
A realidade, contudo, era bem mais complexa!

Antes de completar 30 anos, Edith já padecia de problemas de origem reumática. Foram-lhe diagnosticados poliartrite e um reumatismo deformante que lhe atacava braços e mãos, pernas e pés e também o rosto!

Para o seu tratamento, que se iniciou na década de 40, foi-lhe ministrado um novo medicamento, a cortisona, cujos efeitos secundários, não tinham sido até ao momento suficientemente avaliados, principalmente para quem os tomava em doses excessivas, como foi o seu caso.

Problemas gástricos, perda de massa muscular, deterioração do sistema imunitário, osteoporose, inchaços do rosto e do abdómen, entre outros foram os resultados da medicação, enquanto, apesar de tudo, a doença não deixava de progredir.

Aliado a este quadro, três violentos acidentes de automóvel, o primeiro com Charles Aznavour que foi seu motorista e secretário, e o último com George Moustaky com quem viveu algum tempo, provocaram-lhe fracturas diversas, cuja convalescença nunca conseguia completar, devido aos seus compromissos profissionais.

As dores permanentes que sentia levaram-na ao uso continuado da droga que era usada nos hospitais para combater o sofrimento: a morfina!

Dahan aborda de passagem estas questões, mas elas aparecem descontextualizadas!

Vê-se que Piaf recorre às injecções de morfina com muita frequência, mas sem a explicação da origem fica, quanto a mim, criado um equívoco, relativamente à verdadeira natureza da sua dependência face àquela droga!

Dahan, tem no filme um objectivo claro: dramatizar ao máximo o espectáculo da degradação fisica da cantora, para suscitar a emoção do público e, quanto a mim, claramente exagera.

Na cena em que Edith aparece nos bastidores, antes do início do primeiro espectáculo do Olympia de 1960, Dahan dá-nos uma Piaf de tal forma frágil, que só amparada por duas pessoas consegue manter-se de pé.

Sabe-se que Edith estava já doente, contudo nas imagens reais do espectáculo que se encontram a seguir, com a canção La Foule pode-se avaliar, o quanto de rigoroso ou de caricatural, é a encenação de Dahan.



Penso que por hoje já me alonguei em demasia, para um só post, mas a culpa é de Dahan, cuja visão de Piaf, por muito desnorteada, desregrada e desgraçada que fosse a sua vida, me levou a não reconhecê-la no seu filme e, por isso mesmo me obrigou a escrever muito mais do que pretendia inicialmente.

Se houve alguém com a resistência suficiente para chegar até aqui, direi ainda que penso, no próximo post falar, sobre mais alguns aspectos da vida e da carreira de PIAF, tema que muito me agrada e que é quase inesgotável!

Só não sei se o conseguirei fazer ainda esta semana!
Se não o conseguir despeço-me até meio de Outubro!
A partir do final desta semana, Budapeste espera-me e, não querendo abusar da boa vontade dos meus amigos, se alguém tiver algumas dicas sobre restaurantes ou algo de interessante fora dos habituais roteiros turísticos agradeço imenso.


Até lá deixo em paz Piaf, cujo maior vício, para além de cantar, era fazer tricot, deixando aqui uma das suas canções de que mais gosto, criada em 1962, já no final da sua carreira´

Chama-se "Emporte-moi" e vêmo-la, no vídeo abaixo, numa interpretação ao vivo na televisão francesa a menos de um ano antes do seu falecimento.

segunda-feira, setembro 01, 2008

O destino de duas mulheres

Completam-se hoje precisamente 39 anos que o chamado “affaire Gabrielle Russier” teve um desfecho trágico!

Gabrielle Russier, uma jovem professora divorciada de 32 anos apaixonara-se por um seu aluno, Christian, de apenas 16 anos.

Os pais do adolescente, dando-se conta do envolvimento amoroso dos dois, participaram o caso à Polícia e Gabrielle foi detida em Abril de 1969.

Julgada em Julho desse mesmo ano e condenada a doze meses de cadeia, apontada a dedo pela sociedade, e liminarmente afastada do lugar de assistente a que se candidatara na Universidade de Aix-en- Provence, Gabrielle, humilhada, mergulhada no desgosto e vergada pela vergonha perante a sociedade e especialmente perante os seus dois pequenos filhos, suicida-se em 1 de Setembro de 1969.


Gabrielle Russier


Apesar do caso ter escandalizado e dividido a França e ter constituído motivo de acesos debates, o suicídio de Gabrielle foi praticamente silenciado na comunicação social, como se de algo irrelevante se tratasse.
No entanto, dois anos depois, o realizador de cinema André Cayatte inspira-se neste caso e, adaptando a história, faz um filme, em que a personagem da infeliz professora seria representada por Annie Girardot.




Annie Girardot


O filme a que Cayatte deu o nome de “MOURIR D’AIMER” foi um sucesso extraordinário em toda a parte. Tal como a canção de Aznavour sobre o mesmo tema e com o mesmo título!

A aura de escândalo deste dramático caso da vida real, deu-lhe também em Portugal um enorme sucesso e, recordo-me bem, de ouvir soluços e choros contidos na sala onde assisti à sua projecção!

Annie Girardot, uma das mais prestigiadas e premiadas actrizes francesas de sempre, esteve notável e conseguiu tocar profundamente os espectadores de todo o mundo.



A carreira de sucesso de Annie continuou mas, tal como tem acontecido com muitas actrizes, devido ao avançar da idade, passou a ter papeis cada vez menos interessantes (recordo-me apesar de tudo de a ver ainda magnifica 3 anos depois em Chove em Santiago de Helvio Soto).
A sua paixão de sempre, o Teatro, foi por isso uma opção compreensível e inevitável.

Mulher de causas e sem medos, no principio dos anos 80, não quis deixar que a velhinha, mas prestigiada sala do Casino de Paris, fosse transformada num silo de automóveis e, associando-se à cantora Catherine Lara, embarcou na aventura de produzir uma comédia musical chamada “Revue et Corrigée”.

Foi um fracasso total!
Após cinco apresentações, tiveram que fechar as portas e, enquanto Lara se refugiava em casa durante quase um ano, abatida numa depressão profunda, Annie, que perdeu com esta aventura o que tinha e o que não tinha, embrenhou-se cada vez mais no trabalho:
Pequenos papéis no cinema e o Teatro… sempre e sobretudo o Teatro!

Pegando numa extraordinária peça brasileira chamada “Apareceu Margarida” de Roberto Athayde, que em 1973 catapultara Marília Pêra para a galeria das melhores actrizes do Brasil, Annie transformou este texto na sua peça talismã, dando-lhe um sucesso tal que de Praga a Montevideu era chamada para representar a sua “Madame Margueritte”.


Esta peça é um monólogo brilhante, que mostra uma professora louca e tirânica que, perante os seus discípulos, serve-se da sedução à chantagem e da demagogia à pura repressão, maltratando os alunos e envolvendo-os no seu mundo demencial! Uma peça para grandes actrizes!

Ora, foi precisamente numa das digressões de Madame Margueritte, em Montevideu no ano de 2001, que algo correu mal a Annie Girardot. Cansaço e falhas de memória levaram à interrupção da peça e ao cancelamento das suas apresentações!

Os jornais sul-americanos disseram então que Annie Girardot estava com problemas de saúde devido a esgotamento provocado por constantes e longas viagens.

A imprensa francesa, contudo, foi mais agressiva e afirmou, com todas as letras, que o problema de Girardot se devia ao consumo excessivo de álcool e drogas e que portanto as suas crescentes dificuldades em palco nada teriam que ver com simples cansaços de viagens.

Nos anos que se seguiram essas acusações foram-se repetindo e tomando proporções tais que levaram a que, em Setembro de 2006, o seu advogado Emmanuel Asmar fizesse uma declaração pública que espantou toda a gente:

Há vários anos que Annie Girardot se encontrava a lutar contra a doença de Alzheimer!


No dia seguinte a edição da revista Paris-Match trazia uma entrevista com a neta e com a filha de Annie, em que se percebeu como vivia e como conseguia trabalhar essa mulher afectada por tão terrível doença.

Os primeiros sintomas foram detectados pela filha Giulia Salvatori, durante umas férias na Sardenha, em que Annie a confundiu com a avó já falecida.

A partir daí, a mente confusa e a perda de memória tornaram-se mais evidentes e o mal foi diagnosticado.

Annie entrou então num estado de intermitência entre a apatia e a lucidez, percebendo-se desde logo que a sua melhor terapia seria a continuação do trabalho.

Os seus grandes olhos expressivos que entretanto começaram a ficar mortiços e fixados no vazio, ganhavam vida e um brilho novo, sempre que ouvia o comando de ACÇÃO dos realizadores.

Nesses breves momentos parecia que a doença de Annie deixava de existir e ela representava, como sempre o fizera, brilhantemente!

Os pequenos papéis que foi fazendo, sempre sentada e com o menor número de movimentos possível, implicavam horas e horas de leitura conjunta com a sua filha, apesar de as suas falas se limitarem a frases curtas e simples.

Frases que precisavam ser revistas e relidas centenas e centenas de vezes, tendo Annie que trazer sempre consigo um auricular através do qual a sua filha lhe ia transmitindo o texto!

Filha e neta contam como Annie Girardot vive agora num mundo imaginário, no qual seu marido Renato Salvatori e sua mãe, ambos já falecidos se encontram para ela vivos e sempre presentes.

O facto de ela trabalhar, mesmo nestas impossíveis condições, deve-se ao facto de que a família saber que é isso que ainda lhe alimenta e prolonga a vida.

O apoio de amigos, como o do realizador alemão Michael Haneke, que fora muito criticado por apresentar uma Annie Girardot excessivamente devastada, no seu filme “A Pianista” com Isabelle Huppert, tem sido decisivo para isso.

Annie Girardot com Isabelle Huppert em A PIANISTA
Na verdade, mais do que crueldade ou desrespeito, por não se inibir de apresentar o aspecto envelhecido de uma grande actriz, Haneke teve com ela uma paciência infinita para que as cenas se pudessem realizar.

Desbaratado o seu património com fracassos teatrais imprevistos e com a necessidade de apoio à sua doença Annie Girardot vive agora dos direitos autorais dos seus livros e de uma pensão de 900 Euros mensais.

Os dois empregados que apoiavam a Annie foram já substituídos por familiares que se revezam nesta difícil tarefa, já que qualquer instituição capaz de receber pessoas nestas condições custa, em França, no mínimo, 3000 Euros mensais.

A sua filha entretanto, no final de 2007 publicou um livro com as memórias de sua mãe.
Em MEMOIRES DE MA MÉRE, mais do que pormenores infelizes destes últimos anos de Annie, esta biografia fala de uma existência, rica, cheia de coisas interessantes e de peripécias que fazem já parte da História.
Ficou, por exemplo, finalmente, desvendada a identidade do amante de Annie, que para não ser apanhado com ela na cama por um inoportuno visitante, se viu obrigado a fugir em cuecas pelas traseiras da casa.
Esse seu amante, soube-se agora, dava pelo nome de.... François Mitterrrand!

Depois de uma carreira espantosa, a família não quis que a imagem prevalecente da belissima Annie Girardot, que deslumbrou o mundo em Rocco e Seus Irmãos de Visconti, ficasse afinal a ser marcada pela da pobre velhinha doente.
Annie Girardot em ROCCO E SEUS IRMÂOS de Visconti
Infelizmente, pelo que se sabe da evolução da sua doença, Annie, que já mal se movimentava, hoje em dia, quase a completar 77 anos, também já praticamente não fala.


Recordo, quase a terminar, a frase que André Cayatte utilizou, quando questionado sobre as razões da escolha de Annie Girardot para a protagonista de Mourir d’Aimer: “souffrir avec énergie lui va bien”.