quarta-feira, janeiro 13, 2010

Do esquecimento à popularidade

A história da sofredora Griselda incluída por Bocaccio no seu Decameron deu origem a duas Óperas no século XVIII, primeiramente de Scarlatti e depois de Vivaldi.

Vivaldi, que era um sacerdote era também compositor e foi exactamente através de Griselda para ganhou finalmente a respeitabilidade de que merecia junto das elites suas contemporâneas.



Eventualmente esse estatuto demorou pois ele terá começado por escrever peças infantis e, segundo os seus críticos, músicas demasiado populares.

De facto foi um criador musical extremamente prolífico, não constituindo a sua actividade sarcedotal qualquer óbice, já que conseguira dispensa de celebrar missa devido à sua aparente fragilidade física, derivada da asma.

Fragilidade essa que entretanto não o impediu de ter inúmeras amantes, uma das quais Anna Giro, um mezzo-soprano, para quem escreveu exactamente o papel de Griselda, e que era jocosamente conhecida pela l’Annina del Prete rosso (Vivaldi era ruivo).




Após a sua morte, na miséria, como aconteceu com muitos dos génios da música, aos 62 anos, foram precisos quase 150 anos para que, já no século XX, a sua obra viesse a ser de novo tocada e o seu talento devidamente reconhecido, quer como criador de música, quer devido ao seu papel para a definição da estrutura de concertos e sinfonias.

Se as suas Quatro Estações se tornaram há muitos anos um dos clássicos da música erudita, só mais recentemente a sua Griselda se tornou popular, particularmente devido a uma das suas árias: "Agitata da due venti"



Embora esta ária tenha vido a ser cantada por inúmeras cantoras, quer mezzos, quer sopranos, ao longo das últimas décadas, só após a mezzo-soprano Cecília Bartoli a ter incluído nos seus recitais é que ela se tornou verdadeiramente uma ária popular.

Mais uma vez um intérprete pode fazer toda a diferença. E neste caso fez decisivamente!

Claro que há quem critique bastante Bartoli, quer pela sua postura em palco que dizem ser mais própria de uma cantora rock do que de uma cantora lírica, quer pelo facto de ter dado uma visão demasiado pessoal a esta peça, tornando-a eventualmente demasiado “agitata”!

Vejamos então o que fez em 1986 grande Monserrat Caballé com esta ária, que é por si só um assombroso exercício de virtuosismo de coloratura , plena de “legatos” e “stacatos” dificilímos! Seguidamente, veremos Bartoli!

Eis então a versão da soprano Monserrat:



E agora a da mezzo Bartoli, quase 30 anos depois:

segunda-feira, janeiro 04, 2010

O melhor de França através do Brasil

Hoje ao mostrar duas versões da mesma canção venho também trazer dois nomes de cantores/compositores que já nos deixaram, mas cuja obra perdura através dos tempos.

Marcel Mouloudji, nascido em Paris em 1922, tinha ascendência argelina e foi um homem multifacetado. Cantor, escritor e actor, foi combatente da resistência francesa durante a Segunda Guerra Mundial e um militante activo da esquerda francesa, quer apoiando as lutas laborais no seu país, quer envolvendo-se nas principais causas internacionais pela liberdade e pela democracia, como foi o caso da luta contra a ditadura chilena.

Contudo alguns dos seus actos valeram-lhe a hostilidade de boa parte do público e das autoridades francesas, sendo ostracizado e as suas canções censuradas por mais de uma década, quando no próprio dia em que as tropas francesas foram derrotadas em Dien Bien Phu ele interpretou num espectáculo público a canção anti-militarista de Boris Vian “Le Deserteur”.

Passado o Maio de 68 e tendo fundando a sua própria editora retomou na plenitude a sua actividade de cantor, sendo hoje considerado, muito justamente, como um dos nomes mais prestigiados da música francesa.

Mouloudji faleceu aos 70 anos em 1992 e é dele uma das canções de que eu mais gosto: “Un jour tu verras”, canção que ele criou em 1954.



Ao mesmo tempo que Mouloudji nos dava esta bela canção, do outro lado do Atlântico aquando de uma reunião social em casa da familia Matarazzo em São Paulo, um produtor musical, Roberto Corte Real, ao ouvir cantar a jovem Maysa ficou não só impressionado com a extraordinária qualidade da sua voz, mas também com o bom gosto das escolhas musicais que ela fazia, que iam muito para além da música brasileira e passavam pelo jazz, pela música hispânica e pela canção francesa.

Tendo-a convidado para gravar um disco, Maysa estreou-se apenas com músicas cantadas em português. No entanto num disco posterior, gravado em 1957, incluiu já canções em inglês e francês, sendo exactamente “Un jour tu verras” uma das músicas por ela escolhida.

Existem versões desta canção por vários cantores, de Juliette Greco a Dianne Reeves, de Nana Mouskouri a Michel Delpech, contudo ao ouvir Maysa a sensação com que eu fico é a de que Mouloudji encontrou nela a voz ideal, a voz que dá a versão “definitiva” desta canção (com o senão de duas ou três pequenas falhas na dicção da vogal “e”, sem o que eu juraria estar perante uma cantora de língua materna francesa).

Espero que gostem tanto desta bela canção como eu, que a considero uma das minhas “músicas de cabeceira”, numa das mais belas vozes de sempre, que infelizmente nos deixou cedo demais, em 1977, mas que para mim permanece, através do seu vasto e excelente repertório, bem viva.