sexta-feira, dezembro 18, 2009

Standards - Modos de interpretar

Felizmente que houve a inteligência de se registar em vídeo e passar na televisão as master classes de Elisabeth Schwarzkopf onde, para além das técnicas de abordagem vocal a obras específicas, ela era muito exigente quanto à necessidade de uma boa dicção e de uma correcta interpretação do sentido das palavras.

Tive a oportunidade de ver a transmissão de todos esses vídeos há longos anos na RTP e era muito interessante ver o que cantores profissionais, já experimentados, suportavam para poder aproveitar os ensinamentos da mestra.



Ensinamentos que, se pensarmos bem, tanto servem para o canto lírico, como para o canto ligeiro, já que quem se presta a pisar um palco para cantar palavras tem que as pronunciar correctamente e lhes dar o devido sentido.

Curiosamente Marco Paulo, ao ser um dia entrevistado sobre o seu insucesso nos festivais RTP da canção, queixava-se de si mesmo, reconhecendo que uns versos em que dizia “Sou tão feliz” nunca poderiam ser cantados da forma dramática como ele o fez…

Neste caso convenhamos que a culpa nem era só dele, quer a música, quer a orquestração empurraram-no para esse erro, que ele na altura não percebeu existir.

Se em vez de “Sou tão feliz”, cantasse “Estou bem lixado” (desculpem a vulgaridade) acabaria por resultar bem melhor com aquela música e com aquele arranjo orquestral!



Infelizmente apesar de termos muitos cantores, não temos muitos intérpretes, e o canto precisa de ser feito com a inteligência de quem sabe o que diz, dizendo algo com interesse e com sentido!

Bom, mas hoje não vou falar de portugueses, vou falar de Barbra Streisand cuja preocupação pelo sentido dos textos ficou patente, logo desde o início da sua carreira.

Barbra começou muito jovem e com o pé esquerdo! Levada pela mãe a uma editora discográfica, aconselharam-na a dedicar-se a outra profissão pois, segundo eles, a jovem Barbra não tinha qualquer jeito para cantar.

No entanto este mau começo não a fez desistir do seu sonho e, ainda adolescente, concorreu a um concurso de canto para jovens amadores e tendo ficado em primeiro lugar, começou então a sua carreira com um contrato para actuações num bar gay de Manhattan.

Aí, a notícia da qualidade das suas interpretações depressa se espalhou tendo passado rapidamente para artista residente de um night-club famoso na época, o Bon Soir, onde a novata Streisand se arriscava em versões muito pessoais dos standards da música americana.

Apresento dois deles, nas suas versões originais e, depois, nas versões de Streisand.

Começo por “Cry me a river”, canção que foi escrita para Ella Fitzgerald, mas que acabou por ser criada por Julie London, que lhe deu aquela que é considerada por muitos como a primeira e definitiva versão deste tema!



Quem reparar bem na letra verificará que ela retrata uma zanga amorosa feita em discurso directo!


Now you say you're lonely
You cried the long night through
Well, you can cry me a river
Cry me a river
I cried a river over you

Now you say you're sorry
For being so untrue
Well, you can cry me a river
Cry me a river
I cried a river over you

You drove me,
Nearly drove me out of my head
While you never she'd a tear
Remember?

I remember all that you said
Told me love was too plebeian
Told me you were through with me

Now you say you love me
Well, just to prove you do
Cry me a river
Cry me a river
I cried a river over you


Bom, temos aqui portanto uma mulher que se viu desprezada e até humilhada pelo namorado, uma mulher que sofreu muito por ele e que agora o vê voltar “esquecido” de tudo o que ele lhe dissera e fizera…

Face a este contexto, Barbra não adoptou a forma doce e suave de abordar a canção, que tornou famosa Julie London, cantou-a de um jeito sarcástico e até agressivo, a que quase só faltava a mão na anca e um tamanco a voar!

Consoante as audiências a sua interpretação era mais ou menos teatral! Para aqui escolhi a versão em que a actriz Barbra se revela completamente através da cantora Barbra. Trata-se de uma gravação ao vivo durante o concerto que deu no Central Park em 1967!



Ao contrário da versão de Julie London, esta não é decerto uma versão que se oiça calma e descontraidamente, como pano de fundo de uma conversa de amigos, em nossa casa! É preciso parar para a ouvir…

O mesmo acontece com a canção seguinte!

Ambas constantes do seu espectáculo no Bon Soir, foram gravadas no seu primeiro disco, que inicialmente teve uma edição modesta de apenas 500 exemplares, mas que depois teve que ser produzido em doses maciças tendo ido directamente para o primeiro lugar da lista de vendas, onde se manteve várias semanas!

É que na verdade, à semelhança do que acontecia com os clientes do Bon Soir, o disco surpreendia pela qualidade da interprete e muito particularmente pela sua versão de Happy Days Are Here Again, canção de 1929, que serviu para animar tropas, celebrar vitórias, de hino eleitoral de Roosevelt e depois do Partido Democrático.



So long sad times!,
Go 'long bad times!,
We are rid of you at last
Howdy, gay times!
Cloudy gray times,
You are now a thing
Of the past, cause:

Happy days are here again
The skies above are clear again
Let us sing a song of cheer again
Happy days are here again

Altogether shout it now!
There's no one who can doubt it now
So let's tell the world about it now
Happy days are here again

Your cares and troubles are gone;
There'll be no more from now on
Happy days are here again
The skies above are clear again
Let us sing a song of cheer again
Happy days are here again


Ora, como se vê, esta é uma canção com um texto de apelo político ao optimismo, que era cantada em comícios e que portanto teria que entrar bem no ouvido do público. Só que a verdade é que a música era quase infantil, o que levava a que, quando a multidão a cantava todos se riam pois sentiam-se tolinhos a entoá-la!

Streisand resolveu então alterar ritmicamente a canção! O texto que poderia ser o de um discurso, então teria que ter uma cadência mais adequada à seriedade e o empolgamento de quem pretendia transmitir uma mensagem!

Para isso, sem utilizar um tom declamatório, deu-lhe uma cadência mais lenta, que em vez de passar sentimentos de alegria, procurava passar sentimentos de euforia! Euforia provocada quer pelo novo arranjo orquestral, quer pela sua própria interpretação.

O sucesso desta versão foi tal que se tornou obrigatória até hoje nos espectáculos de Streisand e sempre que é tocada na forma original nos comícios do Partido Democrático é apenas em versão orquestral, sem que ninguém a queira cantar ao ritmo apresentado antes de Barbra!

Vamos ver a sua interpretação desta canção, também no mesmo concerto de Central Park de 1967!




E já agora numa emissão do Judy Garland Show de 1963, em que a já mais do que consagrada Judy chama a iniciante Barbra para cantarem em dueto duas canções em simultâneo! E, como aliás fica evidente no resto desse programa, tudo foi feito por Judy de forma a destacar a cantora mais jovem, que ela pressentia poder ser a sua sucessora natural!
É um momento de televisão magnifico para os apreciadores das duas cantoras!

Mirene Cardinalli - 40 anos depois

Completam-se amanhã 40 anos sobre o desaparecimento de Mirene Cardinalli!

Faleceu aos 27 anos, vitima de um brutal acidente de viação na “recta do Cabo”, no qual faleceu também o seu marido e ainda o jovem cantor Carlos Belo!

Possuidora de uma voz notável, à época da sua morte estava numa fase de viragem da carreira para um repertório completamente diferente do estilo do cançonetismo ligeiro mais comum na época.

Tinha em preparação com o compositor de baladas e canções de intervenção Vieira da Silva (também jornalista da revista Mundo da Canção), um disco onde incluiria entre outras a canção “Para a construção da cidade necessária”.

Ficaram-nos contudo os registos de algumas gravações, onde se evidenciam claramente as suas qualidades vocais e interpretativas:



O seu maior êxito popular, passado constantemente nas emissões de rádio, chamava-se “Julgamento”. Contudo, Mirene gravou outras canções, talvez até mais interessantes, incluindo a versão mais conseguida de Vocês Sabem Lá, que em nada fica atrás da versão original de Maria de Fátima Bravo.

Fica aqui pois a memória desse êxito popular e da sua intérprete, ainda presente na memória de todos os que admiravam, sabendo que se fez decerto muita falta ao mundo artístico português, terá feito obviamente, uma falta humanamente mais forte aos seus dois pequenos filhos, que nesse dia 19 de Dezembro de 1969 perderam em simultâneo Pai e Mãe!