segunda-feira, setembro 01, 2008

O destino de duas mulheres

Completam-se hoje precisamente 39 anos que o chamado “affaire Gabrielle Russier” teve um desfecho trágico!

Gabrielle Russier, uma jovem professora divorciada de 32 anos apaixonara-se por um seu aluno, Christian, de apenas 16 anos.

Os pais do adolescente, dando-se conta do envolvimento amoroso dos dois, participaram o caso à Polícia e Gabrielle foi detida em Abril de 1969.

Julgada em Julho desse mesmo ano e condenada a doze meses de cadeia, apontada a dedo pela sociedade, e liminarmente afastada do lugar de assistente a que se candidatara na Universidade de Aix-en- Provence, Gabrielle, humilhada, mergulhada no desgosto e vergada pela vergonha perante a sociedade e especialmente perante os seus dois pequenos filhos, suicida-se em 1 de Setembro de 1969.


Gabrielle Russier


Apesar do caso ter escandalizado e dividido a França e ter constituído motivo de acesos debates, o suicídio de Gabrielle foi praticamente silenciado na comunicação social, como se de algo irrelevante se tratasse.
No entanto, dois anos depois, o realizador de cinema André Cayatte inspira-se neste caso e, adaptando a história, faz um filme, em que a personagem da infeliz professora seria representada por Annie Girardot.




Annie Girardot


O filme a que Cayatte deu o nome de “MOURIR D’AIMER” foi um sucesso extraordinário em toda a parte. Tal como a canção de Aznavour sobre o mesmo tema e com o mesmo título!

A aura de escândalo deste dramático caso da vida real, deu-lhe também em Portugal um enorme sucesso e, recordo-me bem, de ouvir soluços e choros contidos na sala onde assisti à sua projecção!

Annie Girardot, uma das mais prestigiadas e premiadas actrizes francesas de sempre, esteve notável e conseguiu tocar profundamente os espectadores de todo o mundo.



A carreira de sucesso de Annie continuou mas, tal como tem acontecido com muitas actrizes, devido ao avançar da idade, passou a ter papeis cada vez menos interessantes (recordo-me apesar de tudo de a ver ainda magnifica 3 anos depois em Chove em Santiago de Helvio Soto).
A sua paixão de sempre, o Teatro, foi por isso uma opção compreensível e inevitável.

Mulher de causas e sem medos, no principio dos anos 80, não quis deixar que a velhinha, mas prestigiada sala do Casino de Paris, fosse transformada num silo de automóveis e, associando-se à cantora Catherine Lara, embarcou na aventura de produzir uma comédia musical chamada “Revue et Corrigée”.

Foi um fracasso total!
Após cinco apresentações, tiveram que fechar as portas e, enquanto Lara se refugiava em casa durante quase um ano, abatida numa depressão profunda, Annie, que perdeu com esta aventura o que tinha e o que não tinha, embrenhou-se cada vez mais no trabalho:
Pequenos papéis no cinema e o Teatro… sempre e sobretudo o Teatro!

Pegando numa extraordinária peça brasileira chamada “Apareceu Margarida” de Roberto Athayde, que em 1973 catapultara Marília Pêra para a galeria das melhores actrizes do Brasil, Annie transformou este texto na sua peça talismã, dando-lhe um sucesso tal que de Praga a Montevideu era chamada para representar a sua “Madame Margueritte”.


Esta peça é um monólogo brilhante, que mostra uma professora louca e tirânica que, perante os seus discípulos, serve-se da sedução à chantagem e da demagogia à pura repressão, maltratando os alunos e envolvendo-os no seu mundo demencial! Uma peça para grandes actrizes!

Ora, foi precisamente numa das digressões de Madame Margueritte, em Montevideu no ano de 2001, que algo correu mal a Annie Girardot. Cansaço e falhas de memória levaram à interrupção da peça e ao cancelamento das suas apresentações!

Os jornais sul-americanos disseram então que Annie Girardot estava com problemas de saúde devido a esgotamento provocado por constantes e longas viagens.

A imprensa francesa, contudo, foi mais agressiva e afirmou, com todas as letras, que o problema de Girardot se devia ao consumo excessivo de álcool e drogas e que portanto as suas crescentes dificuldades em palco nada teriam que ver com simples cansaços de viagens.

Nos anos que se seguiram essas acusações foram-se repetindo e tomando proporções tais que levaram a que, em Setembro de 2006, o seu advogado Emmanuel Asmar fizesse uma declaração pública que espantou toda a gente:

Há vários anos que Annie Girardot se encontrava a lutar contra a doença de Alzheimer!


No dia seguinte a edição da revista Paris-Match trazia uma entrevista com a neta e com a filha de Annie, em que se percebeu como vivia e como conseguia trabalhar essa mulher afectada por tão terrível doença.

Os primeiros sintomas foram detectados pela filha Giulia Salvatori, durante umas férias na Sardenha, em que Annie a confundiu com a avó já falecida.

A partir daí, a mente confusa e a perda de memória tornaram-se mais evidentes e o mal foi diagnosticado.

Annie entrou então num estado de intermitência entre a apatia e a lucidez, percebendo-se desde logo que a sua melhor terapia seria a continuação do trabalho.

Os seus grandes olhos expressivos que entretanto começaram a ficar mortiços e fixados no vazio, ganhavam vida e um brilho novo, sempre que ouvia o comando de ACÇÃO dos realizadores.

Nesses breves momentos parecia que a doença de Annie deixava de existir e ela representava, como sempre o fizera, brilhantemente!

Os pequenos papéis que foi fazendo, sempre sentada e com o menor número de movimentos possível, implicavam horas e horas de leitura conjunta com a sua filha, apesar de as suas falas se limitarem a frases curtas e simples.

Frases que precisavam ser revistas e relidas centenas e centenas de vezes, tendo Annie que trazer sempre consigo um auricular através do qual a sua filha lhe ia transmitindo o texto!

Filha e neta contam como Annie Girardot vive agora num mundo imaginário, no qual seu marido Renato Salvatori e sua mãe, ambos já falecidos se encontram para ela vivos e sempre presentes.

O facto de ela trabalhar, mesmo nestas impossíveis condições, deve-se ao facto de que a família saber que é isso que ainda lhe alimenta e prolonga a vida.

O apoio de amigos, como o do realizador alemão Michael Haneke, que fora muito criticado por apresentar uma Annie Girardot excessivamente devastada, no seu filme “A Pianista” com Isabelle Huppert, tem sido decisivo para isso.

Annie Girardot com Isabelle Huppert em A PIANISTA
Na verdade, mais do que crueldade ou desrespeito, por não se inibir de apresentar o aspecto envelhecido de uma grande actriz, Haneke teve com ela uma paciência infinita para que as cenas se pudessem realizar.

Desbaratado o seu património com fracassos teatrais imprevistos e com a necessidade de apoio à sua doença Annie Girardot vive agora dos direitos autorais dos seus livros e de uma pensão de 900 Euros mensais.

Os dois empregados que apoiavam a Annie foram já substituídos por familiares que se revezam nesta difícil tarefa, já que qualquer instituição capaz de receber pessoas nestas condições custa, em França, no mínimo, 3000 Euros mensais.

A sua filha entretanto, no final de 2007 publicou um livro com as memórias de sua mãe.
Em MEMOIRES DE MA MÉRE, mais do que pormenores infelizes destes últimos anos de Annie, esta biografia fala de uma existência, rica, cheia de coisas interessantes e de peripécias que fazem já parte da História.
Ficou, por exemplo, finalmente, desvendada a identidade do amante de Annie, que para não ser apanhado com ela na cama por um inoportuno visitante, se viu obrigado a fugir em cuecas pelas traseiras da casa.
Esse seu amante, soube-se agora, dava pelo nome de.... François Mitterrrand!

Depois de uma carreira espantosa, a família não quis que a imagem prevalecente da belissima Annie Girardot, que deslumbrou o mundo em Rocco e Seus Irmãos de Visconti, ficasse afinal a ser marcada pela da pobre velhinha doente.
Annie Girardot em ROCCO E SEUS IRMÂOS de Visconti
Infelizmente, pelo que se sabe da evolução da sua doença, Annie, que já mal se movimentava, hoje em dia, quase a completar 77 anos, também já praticamente não fala.


Recordo, quase a terminar, a frase que André Cayatte utilizou, quando questionado sobre as razões da escolha de Annie Girardot para a protagonista de Mourir d’Aimer: “souffrir avec énergie lui va bien”.