quarta-feira, abril 30, 2008

Morrer por dois quilos de farinha


Transcrevo aqui, sem mais comentários uma notícia de hoje do semanário SOL!
Uma menina de oito anos tenta atravessar a fronteira entre o Paquistão e o Afeganistão de forma clandestina por transportar «ilegalmente» dois quilogramas de farinha. Um guarda do Paquistão empurra-a, a criança cai e acaba esmagada por um camião

A situação foi testemunhada pelo presidente da Assistência Médica Internacional (AMI), Fernando Nobre, que hoje a utilizou numa entrevista à agência Lusa para ilustrar o drama da falta de alimentos que tende a aumentar por todo o mundo.
O médico, contactado por telefone em Londres, onde estava em trânsito para Lisboa, manifesta-se chocado pelo drama a que assistiu, causado indirectamente pela proibição imposta pelo Paquistão à exportação de farinha para o Afeganistão, onde aquele alimento básico aumentou 120 por cento nos últimos dez dias.
Nobre foi ao Afeganistão inaugurar uma escola e um centro de saúde, a funcionar já há sete meses numa aldeia dos arredores de Jalalabad, construídos com 250 mil dólares (160.000 euros) em donativos reunidos pela AMI, e que proporcionam já a escolaridade a 600 crianças: rapazes de manhã e raparigas à tarde.
Como a miúda que morreu, muitas outras crianças tentavam iludir a vigilância policial para conseguir atravessar a fronteira na estrada que liga Peshawar (Paquistão) a Jalalabad (Afeganistão), como assistiu o presidente da AMI durante as quatro horas que esteve retido devido ao corte da estrada causado pela morte da criança.
«A situação [de escassez de alimentos] preocupa-nos imenso em termos internacionais», disse Fernando Nobre, que lidera uma organização com representação em 44 países, muitos deles em África e na Ásia, continentes onde o drama causado pelo disparo do aumento dos preços dos alimentos base tem maiores efeitos.
Outro exemplo do drama alimentar: um salário médio no Bangladesh dá para comprar quatro quilos de arroz, o que significa que, feitas as contas, em média, cada elemento da família desse assalariado dispõe de 25 gramas do cereal por dia.
«A comer assim, quanto tempo é que as pessoas sobrevivem», interroga-se Fernando Nobre, para quem o problema vai ganhar «proporções dantescas», «nos próximos meses e nos próximos anos».
Esta realidade acontece enquanto «passam por cima das nossas cabeças [nas redes de telecomunicações internacionais] biliões de dólares por segundo resultantes de actividades especulativas que não pagam um tostão de impostos», considera.
A solução, defende Fernando Nobre, passa pela regulamentação, num «mundo que está desregulamentado» e onde a especulação com alimentos tem que «sofrer uma intervenção rapidamente».
«Os grandes fundos de especulação [que procuram grandes lucros no mínimo de tempo] estão a investir na área alimentar», condena o responsável da AMI.
Ao contrário, o que deve acontecer para inverter a crise crescente é «regulamentar a questão da especulação e criar regras de comércio justo», sustenta.
Outra medida que Fernando Nobre propõe é o perdão da dívida contraída pelos países pobres junto do Ocidente rico, já que «80 por cento dessa verba foi desviada pelos governantes corruptos desses países», pelo que não atingiu os objectivos pretendidos.
Pelo actual caminho, «vamos ficar sob alta pressão» e «os desafios que aí vêm grandes. Não podemos esconder a cabeça como a avestruz», alerta o médico.
É que, assegura, «a massa de descontentes a nível global está a aumentar» e, para «um pai, ver os filhos a morrer à fome ou pegar numa espingarda e fazer alguma coisa» torna-se numa saída possível.
Lusa / SOL

terça-feira, abril 29, 2008

1º de Maio



Chegámos às portas do 1º de Maio!

E, para comemorar a ocasião, o Governo apresentou recentemente um conjunto de medidas que, no seu global, reduzem alguns dos direitos dos trabalhadores, consignados na actual legislação.

Aumenta a possibilidade de despedimentos, altera o conceito de horário de trabalho e cria formas de maior arrecadação de receitas sob o pretexto de controlar a precariedade.

E que razões invoca o Governo para justificar estas medidas?

Pois bem, diz que é para tornar as Empresas mais competitivas!

Mas, tudo o que o senhor Primeiro Ministro tem dito nos últimos dois anos, sobre uma aceleração do crescimento da economia, sobre o aumento do investimento e sobre a performance das nossas exportações não revelará então que, as empresas para crescerem, produzirem e obterem lucros, podem consegui-lo perfeitamente no actual quadro legislativo?

Eventualmente, se houvesse em Portugal trabalho escravo, as Empresa ficariam mais fortes e as estatísticas de investimento seriam mais positivas! Será que é esse o objectivo final?

É bom recordar que o 1º de Maio comemora a luta dos operários para obter o horário de 8 horas por dia. E que essa luta se deu em 1886!

Por ela morreram na forca e ficaram em prisão muitos sindicalistas de Chicago. O seu exemplo e a sua determinação serviram para que as condições de trabalho que hoje temos sejam mais humanas e justas. Deu-se aí uma vitória da civilização, com a aprovação pelo Congresso americano em 1890 do horário das 8 horas!

Ora, ao pôr em causa essa conquista, criando o chamado banco de horas, num ambiente empresarial que, mesmo com a actual Lei, não respeita, em muitos casos, o pagamento por trabalho suplementar, está-se, no fundo, a querer voltar a um modelo do século XIX.

É um retrocesso civilizacional que deveria envergonhar quem o propõe!

Para competir? Mas, competir com quem? Com a China e Índia? Com Marrocos e a Indonésia? É para modelos de sociedades que agora estão a fazer a sua Revolução Industrial que os actuais dirigentes deste mundo nos querem levar?

Ao celebrar acordos de comércio livre com estes países, os governantes ocidentais não o fizeram levianamente.

Sabiam muito bem que o faziam em favor da penetração das multinacionais em países que lhes tinham fechado as portas até aí.

Sabiam muito bem que a contrapartida seria a entrada no nosso mercado de bens produzidos com trabalho infantil e quase escravo.

Sabiam muito bem que estavam a criar um pretexto chamado globalização, para retirar aos trabalhadores ocidentais regalias e direitos, por forma a tornar "competitivas" as empresas.

Sabiam muito bem e não se importaram, porque assim as empresas dominantes ganhariam em todas as frentes.

Será de admirar que os políticos ocidentais, tenham tomado estas opções? Nem por isso? Afinal, bem vistas as coisas, não são os detentores do capital que criam e promovem os políticos que hoje governam o mundo?

O resultado final, é o da engorda permanente das grandes Empresas, tendo como contrapartida uma perda de direitos e de rendimentos dos trabalhadores de Cleveland a Manchester, de Liège à Amadora, de Milão a Hamburgo.

Mas será que, por se tratar de um fenómeno global, criado e aceite pelos políticos destes ultimos vinte anos, teremos nós, cidadãos, que ficar parados e conformados?

Não foi essa a atitude dos trabalhadores de Chicago em 1886!

Compete-nos a nós portanto, aqui e agora, honrar a sua herança e tentar mesmo aprofundá-la!

Quanto às grandes Empresas e aos especuladores financeiros, para os quais os governantes neo-liberais estão a trabalhar, desenganemo-nos, as suas investidas não irão ficar por aqui. A sua sede de poder e de dinheiro fá-los-á querer sempre mais e mais e mais.

Em Portugal, pelos vistos, tê-lo-ão alegremente e, ironia do destino, pelas mãos de algumas pessoas que se dizem socialistas!

O disfarce do lobo com a pele de cordeiro, foi sempre o mais astuto, hábil e eficaz método de embuste!

segunda-feira, abril 28, 2008

MILVA



Hoje gostaria de falar um pouco sobre a cantora Milva. É desde sempre uma das minhas vozes preferidas.



Conhecida em Portugal, não possui contudo a notoriedade que merece, o que é uma pena, pois a ausência de informação sobre esta e outras figuras da música mundial empobrece necessariamente as novas gerações.

Aliás, em Portugal, exceptuando o caso recente de Aznavour, os grandes nomes da música vão passando alegremente despercebidos.

A chegada de Mourinho a Lisboa para férias teve direito a directos televisivos, contudo a vinda de uma Bartoli ou de um Venguerov para actuar são acontecimentos que ficam quase ignorados pelo grande público e limitados a um pequeno número de privilegiados.

No próximo dia 2 de Agosto, a cidade de Dresden, tão célebre pela sua beleza, como pela completa destruição que sofreu no final da Segunda Guerra Mundial, vai ser palco de um acontecimento musical raro. Irão actuar nesta cidade e no mesmo espectáculo, três grandes vozes femininas: Monserrat Caballé, Milva e Angelika Milster. Talvez por isso mesmo o espectáculo tenha como denominação Diva Máxima.

A actuação será ao ar livre na Theaterplatz, local simbólico, escolhido pelas três cantoras como o mais adequado à grandeza do espectáculo e à necessária homenagem que desejaram fazer à cidade e à sua reconstrução.

Quem puder assistir decerto que não se irá esquecer desta conjugação memorável destes três nomes do canto europeu e mundial.

Mas permitam-me que fale de uma das cantoras, Milva, cuja voz sempre me impressionou, desde que a ouvi, pela primeira vez em 1966, no Festival de San Remo, cantando Nessuno di Voi.


Uma cantora que no próximo ano celebrará 50 anos de carreira e 70 de idade, mas que se mantém ainda em plena actividade.

Apresentada em 1961 no Festival de San Remo como rival de outra grande cantora italiana Mina (os jornais chamavam-lhe a anti- Mina), procurando a imprensa da época gerar um "motivador" clima de disputa que, mais tarde em Portugal se procuraria copiar fomentando rivalidades entre Simone e Madalena, assim como entre Calvário e Garcia.

Em 1972 a RAI, mostra-nos entretanto um momento excepcional em que as duas grandes vozes italianas femininas percorrem em conjunto um caminho de Jazz.



Contudo, desde cedo esta cantora mostrou ser mais do que uma boa voz da música ligeira, quando em 1962 gravou um disco de canções revolucionárias, tornando-se a partir daí uma referência musical para a esquerda italiana.




Não será de estranhar portanto, que a ruiva (rossa) Milva passasse a ser conhecida, por Milva, La Rossa, jogando esse cognome com o facto de Rossa significar simultaneamente ruiva e… vermelha.

Milva, de timbre grave e de uma extensão vocal extraordinária, mostrou desde sempre uma notável capacidade interpretativa tendo-se tornado para Astor Piazzola a sua interprete favorita, para quem escreveu e dedicou a sua única Ópera, Maria de Buenos Aires.

Aqui vê-la-emos em Rinasceró - Preludio per l'anno 3001 e Balada para un loco acompanhada em palco, como de costume, pelo próprio Piazzola.











Milva, tornou-se igualmente uma interprete de referência de Brecht e Weil, e foi exactamente para os cantar que se deslocou a Lisboa, na década de 80.

Esteve em São Carlos, para um concerto tão pouco anunciado que só dei por ele quando saíram as críticas... pouco entusiasmadas, diga-se de passagem, dado que as ligações da cantora à musica ligeira, faziam notória urticária aos críticos, que além do mais acharam despropositada a escolha do São Carlos para uma récita de Brecht.

Esse tipo de preconceitos não parece ter, no entanto, muitos seguidores no resto da Europa:

O Presidente Alemão concedeu-lhe a mais alta condecoração de mérito, para a que considerou a melhor interprete de Brecht, reconhecendo o seu contributo para o prestigio e divulgação da da língua e poesia alemãs.



Ou o Governo francês, que lhe outorgou equivalente condecoração pela qualidade artística das suas interpretações da música francesa.




E quanto à escolha das Salas, o São Carlos não se enganou, ou então também estarão equivocados o La Scala de Milão, o Royal Albert Hall, a Deutsch Oper, a Ópera de Paris, ou até mesmo o Festival de Edinburgh, que sempre lhe abriram gostosamente as suas portas.

A sua versatilidade, leva-nos de Morricone a Theodorakis, de Vangelis a Francis Lai, de Piaf a Lúcio Berio. Há nesta voz, muito para escolher e para ouvir….

Antes de morrer Piazzola fez a Milva uma última oferta, uma Ave Maria, dizendo-lhe para a cantar quando apenas se sentisse preparada para tal.

Quase aos 70 anos, Milva resolveu cantá-la e deixo aqui o vídeo da apresentação desta belissíma obra de Piazzola,



Entretanto, com um repertório prestigioso e uma carreira notável, se formos averiguar qual o seu maior sucesso popular, teremos uma surpresa. É que não foi nenhuma das interpretações excepcionais que Milva deixou gravada, que suscitou o maior entusiasmo do público, foi uma canção bem popular, que todos conhecemos muitissimo bem.



Pois é verdade. foi exactamente este o seu maior êxito de vendas: Um simpático e bem humorado fado, no estilo habitual de Alberto Janes, chamado É OU NÂO É, originalmente criado por Amália Rodrigues, mas que no resto da Europa, devido a esta recriação de Milva ficou conhecido por LA FILANDA.

quinta-feira, abril 10, 2008

A próxima vitima



Velha, feia, com simpatias comunistas e até mesmo lésbica são algumas das criticas que a campanha política norte-americana vai deixando cair sobre a Senadora Hillary Clinton.

Na política americana vale tudo mesmo. E há tão pouco pudor que há sites escpecializados em coleccionar e mostrar imagens desfavoráveis dos candidatos, mas com especial preferência num deles (vá-se lá saber porquê?) vidé http://www.zombietime.com/really_truly_hillary_gallery/.

Quando não há outros argumentos recorrem-se a estes tristes exemplos, que se lançam na imprensa, para criar sucessivos factos políticos:


O facto, é que a objectividade e a verdade vendem poucos jornais e dão pouca audiência a telejornais. Desconfio mesmo que quanto mais incapazes e tolos forem os governantes, mais felizes ficam os donos dos meios de comunicação:

Para se ter um pouco de equilibrio, tem que se estar atento a todas as propagandas e por isso, neste momento de Obamomania, que parece estar instalado em todo o lado deixo aqui um pequeno video sobre a tal bruxa, como lhe chamamaram já alguns orgãos de comunicação americanos:



Mais do que pelos discursos, o passado diz decerto muito sobre um candidato.

Em 2001, João Soares em Lisboa, estava certo de que o seu trabalho no municipio seria a melhor propaganda possível para demonstrar aos eleitores a vantagem da sua continuidade.

Hillary, tem desde o início, vindo a insistir nessa mesma posição!
Receio que tenha o mesmo destino do João!

Se isso acontecer, só espero que não suceda nos Estados Unidos, a mesma catástrofe que aconteceu depois em Lisboa, onde afinal, para os eleitores, a capacidade retórica parece ter mais valor do que a garantia de um passado de trabalho com sucesso!

E Obama, que não tenha dúvidas, se for o vencedor vai ser ele de certeza, a próxima vítima!

terça-feira, abril 08, 2008

Vin Rouge

Em 2006 um jovem casal, abriu no Monte Estoril, um dos restaurantes que eu considero do melhor que o nosso panorama gastronómico tem para nos oferecer.

Ambos com um curriculum invejável, passaram já pelos melhores restaurantes da zona de Lisboa.

Ele, o chefe João Antunes, recém galardoado pela Academia Portuguesa de Gastronomia, tem a arte de saber criar e de simultaneamente nos devolver os sabores que tinham ficado lá para trás, nas nossas memórias de infância. Perfeito na confecção e na conjugação de sabores.

Ela, a chefe de sala e responsável pelos vinhos Rita Caldas, tem sempre a par da simpatia e elegância de trato, a capacidade de escolher os mais adequados vinhos para cada prato, para cada sabor.

Estive lá há quinze dias, na minha quinta ou sexta visita, e optei pelo menu de degustação da nova Carta de Primavera. Excelente!

Começou-se, após um delicioso amuse bouche, pelas vieiras salteadas! Apareceram-nos de textura muito agradável, acolitadas de uma massa de arroz no ponto certo, deliciosamente apaladada pela citronela (uma planta semelhante à menta e cujas folhas possuem um aroma a limão) acompanhados de cogumelos selvagens salteadamente saborosos!

Ainda no âmbito das entradas provou-se as molejas. E digo provou-se pois foi a primeira vez que tal passou por este gasganete, já eu sou normalmente renitente a aventuras por partes menos conhecidas e mais viscerais dos animaizinhos. Contudo, também aqui a experiência foi positiva, quer pelas próprias molejas, quer pelos sabores adjuvantes das chalotas e dos espinafres!

Seguiu-se a raia, cujo tratamento, tal como em confecções anteriores deste batoíde, revela uma propensão especial do chef para o cartilaginoso espécime! Desta vez vinha escalfado em caldo de peixe e revelou ter uma carninha consitente q.b. e um sabor marítimo perfeito. Os knepfles de mangericão e os grelos de nabo salteados revelaram-se uma excelente companhia.

Seguidamente passou-se ao Carré de borrego, no ponto exacto, com a surpresa dos bolinhos de alho, cremosos no seu interior, que vieram juntamente com umas batatinhas assadas no forno e uns legumes grelhados muito a propósito, acrescente-se.

Terminou-se o repasto, primeiro com um aclarador de paladar à base de alperce, seguido do Fondant de amêndoa e chocolate e gelado de Mandarina. Quase perfeito, neste caso, pois não encontrei suficiente toque da amêndoa, como estava à espera…

Quanto aos vinhos, direi apenas, para que a memória não me atraiçoe e comece a confundir o que não merece ser confundido, que as combinações propostas pela Rita Caldas, foram excelentes e que tiveram várias origens nacionais e uma experiência francesa (um chardonnay Louis Latour 2005) que funcionou muito bem com as ambos os sabores do mar!

Para quem tiver curiosidade recomendo o site do restaurante
http://www.restaurantevinrouge.blogspot.com/
e recomendo uma visita! Vale mesmo a pena!!!

segunda-feira, abril 07, 2008

Ronda Nocturna de Lars Norén




















Em cena, no Maria Matos, é uma peça onde se vêm potencialidades várias e desajustes múltiplos também!

A morte de uma mãe, promove o reencontro de dois irmãos e suas mulheres, todos entretanto em pleno desencontro afectivo.

Discutem, fumam, bebem e agridem-se verbalmente na moderna sala de estar de um deles e perante as cinzas da progenitora.

Uma ideia, ou como diz o folheto de apresentação, o mote (criado por Edward Albee) descreve o que se passa: O inferno pode ser uma sala confortável e um casal insatisfeito!

Uma ideia interessante! Já pouco original, mas sempre interessante!
É sempre apelativo ver-se dramatizações do relacionamento humano, sobretudo quando nos mostram situações extremas e diálogos amargos entre personagens amarguradas.
Já muitas peças glosaram esta temática, umas são mais felizes que outras, umas dão origem a melhores espectáculos que outras.

O pior para esta é que, se viermos a estabelecer comparações com a que lhe serve de matriz, fica naturalmente a perder. Refiro-me a “Quem tem medo de Virgínia Woolf”, pois fica muito evidente que nela se inspira: na temática, na localização cénica, no conjunto de personagens (dois casais) e até no uso de palavrões.

O alucinante jogo da verdade que vemos na peça de Albee, aqui aparece numa versão mais modesta de confissões mútuas entre irmãos e entre cunhadas.

No entanto, apesar de exigir, tal como a outra, um esforço imenso dos respectivos interpretes, esta Ronda Nocturna nem nos oferece um texto muito conseguido, nem nos dá um grande espectáculo.

O texto desenvolve-se em círculos, longos e repetitivos. Tão longos e tão repetitivos que ao fim de algum tempo a voz dos actores passa a ter como música de fundo o ranger das cadeiras dos espectadores que entretanto não conseguem disfarçar o cansaço perante um texto infindável e cadeiras pouco confortáveis.

Não conheço o texto original e por isso mesmo não sei se os defeitos que encontrei resultam daí, de uma má tradução ou de uma deficiente adaptação. O que sei é que o espectáculo a partir de certa altura, parece apenas uma sequência de cenas que são meras versões de cenas anteriores. Na última meia-hora do espectáculo a sensação de um déjà vu cansativo é inevitável!

Sugere-se levemente a dado momento que existe algo no passado dos irmãos próximo da pedofilia, mas tal nunca se confirma.
Sugere-se vivências que são completamente inverosímeis (um pai que não desliga o telefone para que, do outro lado, a filha, que patina incessantemente pela casa, se sinta mais segura….).
Sugerem-se traições conjugais, cujos contornos e dimensão ficam por se entender.
Fala-se de camas que se vão pedir, a meio da noite, aos vizinhos…
Descobre-se que a filha, patinadora impenitente de 11 anos, é também uma obesa embaraçosamente inapresentável, com uma fixação doentia pela comida....
Um texto que se apresenta portanto, com fragilidades lógicas e debilidades na sequênciação da sua linha condutora, estranhamente óbvias e que requer por isso um esforço adicional dos actores para que se torne credível.
Um tipo de peça como esta é sem dúvida uma peça que exige muito dos actores.
Quatro actores em palco, em diálogo pernamente, que precisam de um excelente texto para que tudo valha a pena.
Se forem óptimos, talvez até nos consigam fazer esquecer algumas debilidades do argumento e dos diálogos. Infelizmente não foi o caso!
Sendo uma peça a quatro vozes, um resultado final equilibrado passaria também pelo equilíbrio das respectivas qualidades interpretativas. Também não é o caso! Apesar de todos terem mostrado uma entrega enorme ao seu trabalho!

António Capelo vai melhorando ao longo da peça, mas o seu débito do texto é quase sempre monocórdico. Se nos estivesse a recitar a lista telefónica, decerto que não precisaria fazer diferente. Tem em compensação, uma boa presença física e gestual, imprescindível para o seu papel e, sem dúvida, um cuidado enorme com a sua dicção.

Orlando Costa, mais convincente, mas em muitos momentos com uma má dicção e escusadamente excessivo na projecção de voz e nos gestos.

Custódia Galego, com o papel mais apagado, em muitos momentos quase que parecia pedir desculpa por estar ali! Melhor que nas falas (algo monocórdica também) deu óptimas contra-cenas.

Luísa Cruz, a mais completa, também com um início algo imperfeito, melhorou rapidamente e deu-nos a melhor das quatro interpretações da noite. Revelou-se sem dúvida ser um excelente animal de palco. Na colocação da voz, no desenvoltura do gesto, no registo certo, na postura física. Um nome a reter…

Muito boa a cenografia. Quinta personagem desta peça, o cenário revelou-se muito bem conseguido. Moderno, elegantemente simples, coerente com as personagens. Parabéns a José Barbieri. Mas também a Cristina Costa pelos figurinos acertados para cada uma das personagens, a José Nuno Lima pela iluminação, ora sombria, ora dramática, e a Luis Aly pela sonoplastia.

Apesar dos defeitos apontados, o espectáculo revelou-se digno e quem quiser estar a par do que se vai fazendo em Lisboa, não fará mal em ir até ao Maria Matos. Na noite em que eu estive presente, muitos dos espectadores gostaram e até aplaudiram de pé!