terça-feira, maio 18, 2010

Heranças

Em Setembro de 2008 coloquei aqui um post sobre Piaf, tendo dito então que haveria ainda mais para dizer, quer sobre dela, quer também por causa dela.

Nessa altura, num dos comentários que me fizeram, o da sempre simpática Verdinha do “je vois la vie en vert”, fui alertado para um dueto, gravado no programa de televisão francês “DUETOS IMPOSSÍVEIS” onde se conjugavam as vozes de Piaf, com a da jovem, mas já consagrada Isabelle Boulay, em “Non Je Ne Regrette Rien”



Esta observação veio exactamente de encontro ao ângulo de abordagem, que desde essa altura tinha pensado para a minha segunda incursão sobre o tema Edith Piaf.

É que na verdade Edith Piaf elevou-se a um estatuto tal que, aquando do seu desaparecimento, ficou um vazio que todos lamentaram e que muitos tentaram (em vão) preencher.

Quem pegaria então na herança artística de Edith Piaf?

Bom, mas ao falarmos da "herança" de Piaf, é inevitável falar de um dos aspectos mais polémicos do final da sua vida, o do eventual apetite pela sua outra herança, a material.

Piaf, na juventude, tivera uma filha, Marcelle, que faleceu com meningite aos dois anos de idade. Isto significaria portanto que o seu segundo marido, aparecido numa altura em que já era óbvia a doença fatal de Piaf, se tornaria o herdeiro legítimo de todos seus bens.

Falo de Theo Sarapo, cujo verdadeiro nome era Theophanis Lamboukas





Theophanis Lamboukas



Um ano antes da sua morte Edith conhecera e casara com Theo, um jovem de origem grega, com menos 20 anos que ela. E o mínimo que se disse na altura é que se tratava de um casal “inesperado”.




Para a maioria do público, este casamento era visto sobretudo como um “golpe do baú” dado por um jovem a uma senhora famosa, com idade para ser sua mãe. Uma mulher doente e carente a quem a vida e a saúde tinham envelhecido acentuadamente.

Para os amigos da cantora a coisa ainda parecia mais séria, pois estavam perfeitamente convencidos que aquele casamento não tinha qualquer sentido.

E isto porque Theophanis Lamboukas, que era um talentoso cabeleireiro parisiense, era não só muito mais jovem que ela, mas também por ser conhecida a sua homossexualidade.

É que, apesar de ser um homem discreto quanto à sua vida intima, Lamboukas tivera, durante algum tempo, um envolvimento intimo com o secretário da própria Edith Piaf, Claude Figus, que era claramente um homossexual assumido. E isso era sabido pela própria Piaf e por todo o seu círculo de amigos!





Piaf entre Theo e Claude Figus

Este casamento surpreendente, realizado de acordo com o rito ortodoxo grego, atraiu todas as atenções e todas as dúvidas, até mesmo as da própria Edith que, segundo confidenciou mais tarde a sua amiga e colaboradora Danielle Bonel, na própria manhã do casamento se questionava sobre se deveria levar o casamento adiante, já que temia que todos se fossem rir dela, achá-la uma velha patética, ao casar com um rapaz, tão jovem e tão inesperadamente diferente!


Piaf com Danielle Bonel, sua governanta e amiga por mais de 20 anos


Bonel ter-lhe-á dito que deveria seguir o seu coração e para não se importar com o que os outros pensassem dela. Isso bastou-lhe!

O casamento realizou-se no meio de uma imensa curiosidade pública e, pouco depois, todos os que a rodeavam viriam a perceber que aquele casamento foi o melhor que poderia ter acontecido a Piaf naquela fase da sua vida.

Face às criticas que ouvia sobre o seu estranho casamento, Piaf ía dizendo com humor: “Estão-me sempre a criticar por eu aparecer tantas vezes despenteada, pois bem, caso-me agora com um cabeleireiro e não quero saber de mais nada”

Theophanis Lamboukas, a quem ela passou a chamar de Theo Sarapo (Sarapo em termos fonéticos corresponde à expressão grega “Eu amo-te”), não terá sido o amor romântico da sua vida, mas foi para ela um grande amigo, que a amou verdadeiramente e nele ela sentiu o pai, o irmão e o filho, que gostaria de ter tido!

Theo, foi de facto, tudo o que ela precisava em termos de afecto, carinho e conforto no penoso último ano da sua vida.

Claro que à semelhança do que fez com Ives Montand e Moustaky com quem viveu e com Aznavour que foi seu motorista, ela quis transformar Theo num artista!

Ela reconheceu nele vocação quer para cantor, quer para actor, até porque ele próprio na adolescência tentara iniciar uma carreira de cantor concorrendo a vários concursos musicais da época!

Assim, Piaf fez com que o jovem tivesse aulas de canto e de representação, o que lhe valeu alguns pequenos papéis no cinema.

Para além disso, daí em diante levou-o consigo para cantar em dueto, em quase todos os seus espectáculos em que actuou.

Um dos seus compositores e amigos Michel Emer fez de propósito para esse efeito uma canção que se tornou um enorme sucesso: “A quoi ça sert l’amour.”



Foi um casamento curto, Piaf faleceria em Outubro de 1963, precisamente no dia em que completava um ano de matrimónio com Theo, devido a complicações sérias do seu cancro de fígado!

A herança material que Theo Sarapo recebeu acabou por ser 7 milhões de francos de dívidas!

Dívidas devidas essencialmente a quebras de contrato, que por razões de saúde Edith não pôde cumprir, e derivadas da manutenção de cuidados que nunca deixaram de lhe ser prestados, por uma equipa de colaboradores que nunca quis dispensar.

Sarapo tentou manter a questão da herança de dívidas em segredo, propondo-se pagá-las até ao último cêntimo. Contudo o segredo não se manteve por muito tempo, já que apenas dois meses após a morte de Piaf, mais precisamente na véspera de Natal de 1963, o tribunal mandou despejar Theo Sarapo da casa de ambos.

É apenas nessa altura que a opinião pública começa a olhar para Sarapo de forma diferente, percebendo, através do luto sentido e prolongado que ele manteve e do modo digno como ele lidava com as dificuldades e até com a crueldade que lhe era imposta pela situação, que aquele rapaz não era afinal o oportunista que a imprensa e o público tinham imaginado.

Veio-se a saber depois, que ele próprio tinha uma fortuna pessoal considerável, dado a sua família possuir uma cadeia de salões de beleza, bastante lucrativa e que portanto nunca precisou do dinheiro de Piaf para nada!

Passado algum tempo Theo volta a gravar, com uma voz mais perfeita do que a que apresentara ao lado de Piaf, não tendo contudo conseguido ir mais longe na sua carreira já que, em Agosto de 1970, morre num aparatoso acidente de automóvel, em que é projectado para a berma de uma estrada à saída da pequena cidade de Panazol, onde agoniza, até ser levado ao hospital, sendo aí dado como falecido. Tinha 34 anos!

Theo está sepultado no Pére Lachaise partilhando o mesmo túmulo com Piaf e a sua pequena filha Marcelle!




Obviamente, que se em vida a questão da herança de Piaf foi alvo de muita controvérsia devido ao seu casamento com Theo, depois da sua morte, tornou-se incontornável falar-se da sua herança artística, ou seja, sobre quem poderia dar continuidade à chamada “chanson realiste”!

Com o desaparecimento de Piaf, muitos sentiram a necessidade de preencher esse vazio.

Os meios intelectuais desejavam que surgisse alguém com o mesmo carisma, a mesma expressividade dramática de Piaf.

Surgia então um nome de uma jovem muito talentosa, que tal como Piaf fora amiga de Jean Cocteau (o escritor morreu no mesmo dia em que Piaf faleceu, exactamente ao ter conhecimento da morte da artista).

No entanto, essa jovem conhecida artisticamente por Gribouille (o seu nome verdadeiro era Marie-France Gaîté) , pela sua própria personalidade detestava ser comparada com quem quer fosse e muito menos viver à sombra de um mito da canção francesa. Infelizmente, também não viveu muito! Em 1968, com apenas 26 anos partiu vítima de uma mistura fatal de medicamentos e álcool!



Havia também a opinião dos compositores que haviam escrito para Piaf.

Margueritte Monot havia falecido pouco tempo antes de Piaf e Charles Dumont, que inicialmente não gostava de Piaf, tivera em tempos uma canção guardada na gaveta que, a dada altura, decidiu entregar a uma jovem chamada Rosalie Dubois.

Essa canção chamava-se “Non Je Ne Regrette Rien”. Contudo, Rosalie teve um grave acidente de automóvel, pouco antes de poder gravar a canção, e os amigos de Dumont e Piaf acabaram por convencê-los a encontrar-se e a canção acabou por ser entregue a Piaf, tornando-se Dumont um dos seus autores de referência.

Retirada provisoriamente dos palcos Rosalie haveria de regressar, ter alguns sucessos, mas o certo é que ninguém acabou por ver nela a desejada sucessora de Piaf, nem mesmo o próprio Charles Dumont, que entretanto acabou por fazer outras escolhas.



Mas o que pensava o público, que era afinal quem mais sentia a falta de Piaf!

Estava-se numa época em que os concursos para jovens talentos já eram moda e neles inevitavelmente apareciam sempre candidatas a novas Piaf.

Houve duas que sobressaíram, quer num concurso promovido pela editora Barclay (estranhamente inspirado nas apostas das corridas de cavalos), quer sobretudo num famoso concurso televisivo de 1965, o Tele Dimanche!

Uma, vinda do sul de França, que conhecia o reportório de Piaf de trás para a frente. Tinha uma voz espantosa, mas ficou em segundo lugar no concurso. Chamava-se e chama-se Mireille Mathieu e o agente artístico Johnny Stark , que assistiu a esse concurso, percebeu que ela poderia ser mais do que um remake de Piaf, podia ser ela mesma e ter um grande sucesso!

Fê-la gravar um disco e apesar dos críticos a considerarem uma cantora provinciana, ela conseguiu logo nesse seu primeiro trabalho, vender mais de um milhão de cópias e tornar-se mesmo um sucesso internacional.

A canção principal desse disco chamava-se Mon Credo:



Entretanto, se Mireille ficou em segundo lugar, em primeiro ficou uma outra jovem, também especialista, desde criança, em cantar as canções de Piaf e que nas tardes de domingo deixava impressionados com a sua bela voz os membros da Associação de Amigos de Edith Piaf, entretanto criada para homenagear a sua memória.

Georgette Lemaire, cujo timbre parecia uma reencarnação de Piaf era o nome dessa jovem, para quem Charles Dumont veio depois a compor.

Georgette não viria a ter projecção internacional, mas tinha uma rivalidade imensa com Mireille Mathieu e um enorme sucesso em França que lhe valeria, mais tarde, ser objecto de homenagens e reconhecimentos especiais por parte do Estado Francês, pelas mãos de Jack Lang e de François Miterrand.



Entretanto, no final dos anos 60 aparece uma outra jovem chamada Betty Mars, cujas semelhanças vocais com Piaf eram ainda mais impressionantes.

Em 1972 ela e Georgette apresentaram-se no concurso nacional francês para a escolha da canção para a Eurovisão. Dessa vez foi Georgette que foi preterida em favor de Betty. A canção chamava-se Come Comedie (clicar AQUI para ver o vídeo).

Devido à semelhança extraordinária da sua voz com a de Edith Piaf, Betty Mars é escolhida como a voz da jovem Piaf, para interpretar as canções nunca gravadas pela “Môme” no filme “Piaf” de Guy Cazaril (1974), dobrando a voz da actriz Brigitte Ariel.

Betty Mars tinha aspirações legitimas, já que tinha uma voz excelente e era uma mulher lindíssima! Acabou por nunca ser aceite como ela própria, aparecendo aos olhos do público e da crítica como uma Piaf fora de tempo.

Enquanto foi novidade encheu salas em França e mesmo em Las Vegas, depois acabou por lhe restar cantar em pequenos bares. O facto de ter uma voz idêntica à de Piaf, acabou por ser a origem do seu sucesso e do seu declínio. Tendo entrado em depressão, acabou, com pouco mais de 40 anos por saltar do janela do seu apartamento para a morte.

Para além de todas as gravações que editou, que infelizmente não foram muitas, encontra-se no youtube, o som inédito de uma actuação ao vivo desta cantora, que me parece ser ilustrativa das suas qualidades e das suas parecenças com Piaf.



Mas, para além das possíveis sucessoras, afinal nunca encontradas, a vida e a carreira de Piaf deram origem a profissionais que se dedicam quase exclusivamente a explorar o seu repertório. Como é o caso da francesa Raquel Bitton e da canadiana Claudette Dion (a irmã mais velha de Céline), ambas fazendo sucesso no outro lado do Atlântico, apesar de possuirem um talento pouco mais do que mediano.

Em toda a parte do mundo há sempre alguém que canta o repertório de Piaf. Desde as mais prestigiadas artistas a perfeitas desconhecidas.

Piaf deu origem também a vários filmes e a espectáculos magníficos, sendo para mim o melhor de todos o criado pela extraordinária Bibi Ferreira, que não procura em nenhum momento ser uma imitadora ou uma herdeira de Piaf.

Bibi, aliás, é tão magnifica como Piaf… Basta conhecê-la… E, se após este post imenso, ainda restar alguém com vontade de passar por aqui, um dia destes Bibi será a figura a tratar por este espaço! É inevitável!

Entretanto, em Portugal também há e houve lugar para se tentar ser Piaf.

Perdoe-me a excelente Wanda Stuart que agora vai desempenhando esse papel, mas eu não gostaria de deixar de referir que a RTP ganhou um prémio internacional em 1993/1994 no Festival de Montreux, com um concerto de uma cantora portuguesa chamada Ariane, totalmente dedicado a Piaf.

Trata-se de uma cantora com mais de 30 anos de carreira e a quem não foram dadas todas as oportunidades que merecia.

Recentemente gravou um CD intitulado Libertad, onde apresenta dois temas de Piaf. Apesar de em vários momentos o sotaque a trair um pouco, tem uma voz que merece atenção:



FINALMENTE, julgo que faz sentido perguntar o pensaria Edith Piaf de tudo isto?

Ela também tinha as suas preferências musicais e talvez seja nessas preferências que se encontra a resposta óbvia para saber quem lhe sucedeu como simbolo da música francesa!

Sucedeu, não no lugar que Piaf deixou vazio para sempre, mas no prestigio e na qualidade que asseguraram a continuidade do interesse da canção francesa através do mundo!

Conta a sua amiga Danielle Bonel, que a acompanhou nas últimas semanas de vida, no seu retiro da Riviera, que Piaf já bastante doente, ouvia repetidamente os mesmos discos, todos eles do mesmo artista! Tinha-os todos, aliás! Emocionava-se a ouvi-lo e simultaneamente sentia-se mais confortada!

É com uma canção desse artista, que penso ter elevado a canção francesa ao mesmo patamar em que Piaf a deixou, que hoje termino! Chamava-se ele Jacques Romain Georges Brel!